Fabrício Renner de Moura

Graduado e Mestre em História, e, Especialista em Campo Social:práticas/saberes. Nesse espaço busco revisitar discussões e interpretações sobre História regional e local, assim como outras dimensões historiográficas.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O desafio de preservar o patrimônio material e imaterial cruzaltense.

A partir de hoje propomos fazer uma caminhada pela rede urbana de Cruz Alta, espaço formado por um conjunto indissociável de objetos naturais, geográficos e sociais em permanente movimento. Entender através da arquitetura histórica, ainda presente no cotidiano da cidade, as memórias e os sentidos que as sociedades de outrora davam aos espaços/patrimônios da cidade.
Para tal intento, usaremos representações fotográficas dos prédios históricos e dos demais locais de convívio da comunidade cruzaltense. Algumas destas representações são oriundas de colecionadores locais engajados na preservação da memória fotográfica, outras foram produzidas pelo nosso receio em perdê-las para sempre, fato que confirmou-se no decorrer dos anos.
Também faremos denúncias e protestos oportunos pelo abandono e pela demolição de muitos prédios, que infelizmente estão inseridos numa tendência urbana muito em voga em Cruz Alta e nas cidades ocidentais desde a passagem do século XIX para o XX, denominada de política do bota a baixo. Ou seja, um movimento que não privilegia uma relação de afinidade entre desenvolvimento e preservação, e sim, a derrubada e destruição das memórias e das identidades entendidas como coisas velhas que remetem aos tempos do atraso e que atrapalham o progresso da cidade.
Assim, graças a esta concepção, a cada ano edificações que contam a História de nossa cidade são destruídas ou radicalmente alteradas, sem a resposta dos poderes públicos e das instituições de ensino para tal ação. Situação incoerente diante da condição histórica de Cruz Alta no cenário estadual e nacional, pois ainda não possui uma política de preservação do patrimônio material e imaterial, tampouco um aparato profissional com historiadores, arquivistas, restauradores e arqueólogos.
Entendemos o Patrimônio Histórico como vestígio do passado que possibilita o estudo das relações de poder dos grupos sociais, uma memória viva e latente que adquiri novos significados pelas novas gerações e forma a identidade de uma comunidade. Desta forma, além de ser mais um subsídio para interpretar o papel político e cultural exercido por Cruz Alta na região e no país ao longo das conjunturas históricas, o estudo do patrimônio oferece um profícuo caminho para entender os laços de pertencimento que os diferentes grupos sociais faziam dos ambientes da cidade.
Vale lembrar, que a perspectiva adotada nesta exposição choca-se com as habituais homenagens e ufanismos históricos. Nosso interesse consiste em observar a relação cotidiana e dinâmica entre estes patrimônios e os sujeitos calados pelo processo histórico local, que inevitavelmente faziam diversos usos destes lugares da memória.
As primeiras imagens que usaremos para abrir nossa análise ilustram dois aspectos extremamente preocupantes e que nos despertaram reflexões, a saber, o completo esquecimento da comunidade cientifica e dos poderes público e privado com as heranças históricas do município, e, o despreparo técnico e cientifico em relação ao tratamento dado a esses patrimônios. Posturas que num futuro próximo, poderão resultar na ameaça aos estudos da história local e no desenvolvimento de possíveis projetos de cunho turístico, comercial e educacional.

domingo, 14 de agosto de 2011

Antiga delegacia de polícia ou cadeia pública. (rua Gal. Câmara, centro)










Desde a segunda metade do século XIX, funcionava nesse local a câmara municipal, o júri e a cadeia pública. Com a inauguração da nova intendência (hoje prefeitura municipal), em 1914, o prédio passou a sediar somente a cadeia pública permanecendo até o final da década de 80 do século passado.
Atualmente, o prédio ainda esta em poder da prefeitura municipal que no ano de 2007, realizou uma reforma na estrutura interna e externa do prédio para transformá-lo no centro municipal de abastecimento. Ao que parece, as obras não tiveram qualquer orientação patrimonial, já que toneladas de terras do interior do pátio foram removidas e muitos materiais poderiam ter sido catalogados.
Mesmo assim, vale destacar que as mudanças asseguraram a preservação dos sinais da antiga cadeia pública em meio a um contexto de demolição da arquitetura histórica de Cruz Alta.
Durante seu longo período de cárcere do município e da região, este prédio fora palco de inúmeras situações que sem dúvida nenhuma ajudam a escrever a história social de Cruz Alta. Por essas paredes passaram homens e mulheres, agressores e agredidos, ricos e pobres. Eis alguns personagens dessa trama:







• Com quarenta anos de idade, a preta chamada Maria, escrava de Leopoldina Pereira Carpes, foi detida por ordem do delegado, para sofrer castigo por desobediência. Apesar de não constar o ano de detenção nos registros da cadeia, podemos ter uma idéia do tempo em que Maria ficou submetida às agressões, isto é, do dia de sua entrada, 23 de agosto a 6 de setembro, quando foi entregue a sua senhora.





• Acusado de cometer três homicídios no distrito dos Vallos (hoje cidade de Fortaleza dos Valos), o escravo Feliciano de vinte nove anos de idade, também permaneceu detido na cadeia pública desde abril de 1877. Após fugir de seu senhor José Carlos Nogueira, Feliciano percorria as matas da região praticando roubos pelas estâncias, até ser avistado pelo negrinho Adão. Possivelmente receoso de que Adão lhe entregasse as autoridades policiais, Feliciano matou o menor com uma pistola e um cacete com que fraturou-lhe completamente o crâneo. Esse crime foi cometido no dia 4 de abril, mas não encerrou por ai. Doze dias depois, 16 de abril, Feliciano voltou a agir, agora contra José Antonio Ferreira também residente no rincão dos Vallos. Com golpes de machado no crânio de José e ferindo com uma faca o cunhado deste, Feliciano ainda prendeu fogo a casa e fugiu. Sabe-se que até o ano de 1881, o escravo ainda aguardava na cadeia o seu julgamento no tribunal da vila sediado na mesma casa.





• Em 30 de novembro de 1900, foi presa Constância Viheivih, trinta e dois anos de idade, residente no 5º distrito, viúva, altura bacha, cor clara, cabellos ruivos e soltos, olhos regular, boca grande, nariz pequeno, estrangeira. Sua detenção foi por ordem do delegado de polícia sob a acusação de crime de morte, cometido no dia 19 de novembro do ano corrente. Julgada em 07 de fevereiro de 1901, Constância foi condenada a seis anos de prisão cumprindo a pena na casa de detenção em Porto Alegre.








• No final de maio de 1924, Benta, com idade desconhecida, proprietária do popular meretrício casa da Roma, foi presa por ter agredido Angelina. O motivo, segundo a imprensa da época que não poupou adjetivos degenerativos as duas mulheres, deve-se as acusações que Angelina fez as filhas de Benta, Clecy e Maria. Assim, Benta dirigiu-se até a casa de Angelina para proteger suas filhas e em meio as discussões fez uso de um pedaço de ferro com que se armára, vibrando vários golpes (...) quebrando a cabeça de Angelina. Detida pela polícia, Benta permaneceu por uma semana no xadrez, sendo removida as pressas para o Hospital São Vicente de Paulo devido os graves ferimentos que sofreu na briga com Angelina.

Circulo Operário Ferroviário de Cruz Alta (rua 20 de setembro, bairro ferroviário)









Hoje corre o risco de ruir, mas na segunda metade do século XX, o Circulo Operário Ferroviário foi palco de reuniões da União dos Ferroviários Gaúchos, entidade representativa da categoria ferroviária, e de intensos debates de personalidades políticas do executivo e do legislativo municipal de todas as agremiações partidárias – PSD, PTB, PL, UDN e PCB, esse clandestino na época.
Nas instáveis décadas de 1950 e 1960, importantes movimentos organizaram-se nesse local, como a greve dos triticultores da região em abril de 1960, a greve dos bancários, o Movimento da Legalidade de 1961, quando ferroviários, triticultores, bancários e trabalhadores das fábricas da cidade uniram-se para defender o cumprimento da constituição de 1946, e, anos depois, a frustrada tentativa de resistência ao Golpe civil-militar de 1964.
Além de espaço político, no Círculo Ferroviário também ocorriam atividades recreativas, esportivas, profissionalizantes e assistencialistas. Nas datas em alusão ao dia do ferroviário e ao dia do trabalho, a família ferroviária e personalidades locais convidadas, divertiam-se e também protestavam sob o som de músicas e hinos . Nos dias do grito de carnaval, dançavam, bebiam e comiam por horas a fio.
Durante a semana, nas horas de troca do turno na oficina da estação, mecânicos, artífices, maquinistas e foguistas matavam um tempo jogando carteado e bocha. Outros ferrinhos fugiam do chefe da estação durante o expediente para beber uns martelinhos e aproveitavam para fazer seu jogo do bicho.
Duas vezes por semana, no segundo andar do edifício, esposas e filhos de ferroviários, participavam dos cursos de corte e costura e, ainda aprendiam a datilografar nas máquinas remington. Para as crianças, o sábado a tarde era reservado as aulas de catequese ministradas por voluntários da igreja. E regularmente médicos, dentistas e advogados, a serviço da Caixa de Aposentadoria dos Ferroviários, usavam as dependências do Circulo Ferroviário para atender os associados.