UM CORRENTINO SOBREVIVENTE DA GUERRA DO PARAGUAI.
Após dias à procura de uma ocupação remunerada, o diarista Braz
Alegre conseguiu um trabalho nas obras de reconstrução da ponte
sobre o arroio Nossa Senhora, região oeste da cidade. Destruída
pelas enchentes de março de 1886, os danos à ponte impediram o
trânsito de carretas e de carruagens à estrada do Faxinal,
importante via de ligação da vila de Cruz Alta às matas dos Rios
Conceição e Ijuí. Para executar a obra, o poder público
municipal à época, contratou o construtor André Antônio Moraes,
que apresentou o orçamento “mais em conta” e o prazo de seis
meses para conclusão da ponte. Conforme o contrato, cabia a Moraes
providenciar e bancar as ferramentas e a mão- de- obra.
Com sua
carreta de dois eixos e puxada por um cavalo, Moraes percorreu as
ruas da cidade a procura de trabalhadores. Como de costume,
dirigiu-se a fonte de água pública conhecida como “chafariz da
Igreja” (Hoje esquinas das ruas João Manuel e Venâncio Aires),
local frequentado por muitos trabalhadores dispostos a ganhar alguns
trocados por jornadas limitadas. Em meio às filas de usuários das
bicas de água, homens, mulheres e crianças, formavam pequenas rodas
em torno da fonte para flanar, cantarolar, beber e jogar. Entre os
jogos preferidos que ajudavam a minimizar o tédio da espera, estavam
os temidos jogo do bicho e jogo de baralho espanhol denominado de
“primeira”.
Carregado com pás, enxadas, foices, machados, serras, cordas,
correntes, esquadros, martelos, pregos e querosene, e, rodeado pelos
seus cães perdigueiros, Moraes estacionou a carreta e enunciou a
proposta de trabalho, prometendo pagar um vintém por dia. Além
dessa garantia, o construtor comprometeu-se pelo transporte até o
local da obra distante alguns quilômetros do centro da cidade.
Quanto à alimentação e possíveis acidentes e ferimentos
decorrentes da obra, declarou que era de total responsabilidade do
trabalhador. Diante dessas condições e desempregado há meses, o
argentino da cidade de Corrientes, Braz Alegre, 35 anos, aceitou a
proposta e ofereceu-se ao trabalho.
Alegre tinha experiência neste ramo, trabalhou na reconstrução da
ponte sobre o córrego “Chico Preto” na estrada para o distrito
do Cadeado e constantemente era chamado pelo construtor Luiz
Pastoris. Este último vencedor de muitos contratos de obras públicas
nos últimos anos do Império. Todavia eram empregos temporários e
desvalorizados, visto que o trabalho associava-se a escravidão e a
violência. Uma prática de gente ignorante, pobre e analfabeta, de
modo que o valor do dia de trabalho e o pagamento dependiam do
interesse do empregador. O Estado, por sua vez, não interferia nesta
relação, legitimando explorações, humilhações, espancamentos,
condições desumanas de trabalho.
Mesmo desprovido de direitos à aposentadoria e à assistência
médica (conquistas sociais que só viriam mais tarde na República
durante a Era Vargas), não restava alternativa a Alegre e a tantas
pessoas senão submeter-se aos mandos e desmandos dos patrões.
Alegre fugiu com sua família da cidade de Corrientes, as margens do
rio Paraná, por volta dos anos de 1866 e 1867. Em abril de 1865, a
esquadra naval paraguaia e três mil soldados bombardearam, invadiram
e saquearam Corrientes, mudando radicalmente a vida da família.
Durante a ocupação paraguaia, jovens das cidades de Buenos Aires,
Rosário, Córdoba e Santa Fé, bem como de Corrientes, alistaram-se
nos batalhões de infantaria e cavalaria do Exercito para recuperar a
cidade, mas sem sucesso.
Diante dos saques, dos toques de recolher, das prisões arbitrárias
e das violências dos soldados e dos oficiais paraguaios às mulheres
e às crianças, a família Alegre não hesitou em fugir. Sem tempo
deixaram a estreita rua Santiago Del Estero, nordeste da cidade, onde
moravam e tomaram o caminho de Posadas atravessando o rio Uruguai no
povoado de San Xavier. Em território brasileiro pernoitaram nas
margens de picadas e nos matagais seguindo para Cruz Alta por saberem
de sua economia voltada ao comércio de gado, pois há gerações a
família dedicava-se a produção de couros em Corrientes.
No entanto, quando chegaram perceberam que reconstruir a vida em Cruz
Alta não era como esperavam. A cidade já estava sob os efeitos da
guerra, economia estagnada, preços dos alimentos exorbitantes e
subscrições para os feridos e os órfãos. Com poucos recursos,
pois deixaram às pressas tudo o que tinham em Corrientes, ocuparam
as margens de um dos afluentes do rio Panelinha, no bairro da
capoeira. A pretensão da família em investir no comércio do couro
tornara-se inviável. A alternativa para sobreviver foi trabalhar em
madeireiras, olarias, moinhos e outros serviços sazonais.
Assim como Braz Alegre, que fugiu das atrocidades da guerra, muitos
uruguaios, paraguaios e brasileiros, oriundos de outros pontos do
país, sozinhos ou com seus familiares, buscaram um novo recomeço
em Cruz Alta. Todavia, aquelas expectativas iniciais frente à nova e
desconhecida terra deu lugar a uma realidade dramática marcada por
lutas cotidianas anônimas e silenciosas em prol da sobrevivência.
Após seis meses de muito trabalho, a ponte sobre o arroio Nossa
Senhora foi concluída e entregue para o trânsito. Braz Alegre,
devido o longo tempo de exposição ao sol teve queimaduras no rosto
e nos braços, em suas mãos e pés abriram feridas. Novamente
desempregado, restou-lhe, no entanto, retornar ao “chafariz da
Igreja”...
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