Fabrício Renner de Moura

Graduado e Mestre em História, e, Especialista em Campo Social:práticas/saberes. Nesse espaço busco revisitar discussões e interpretações sobre História regional e local, assim como outras dimensões historiográficas.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

UM CORRENTINO SOBREVIVENTE DA GUERRA DO PARAGUAI.

 Após dias à procura de uma ocupação remunerada, o diarista Braz Alegre conseguiu um trabalho nas obras de reconstrução da ponte sobre o arroio Nossa Senhora, região oeste da cidade. Destruída pelas enchentes de março de 1886, os danos à ponte impediram o trânsito de carretas e de carruagens à estrada do Faxinal, importante via de ligação da vila de Cruz Alta às matas dos Rios Conceição e Ijuí. Para executar a obra, o poder público municipal à época, contratou o construtor André Antônio Moraes, que apresentou o orçamento “mais em conta” e o prazo de seis meses para conclusão da ponte. Conforme o contrato, cabia a Moraes providenciar e bancar as ferramentas e a mão- de- obra.
Com sua carreta de dois eixos e puxada por um cavalo, Moraes percorreu as ruas da cidade a procura de trabalhadores. Como de costume, dirigiu-se a fonte de água pública conhecida como “chafariz da Igreja” (Hoje esquinas das ruas João Manuel e Venâncio Aires), local frequentado por muitos trabalhadores dispostos a ganhar alguns trocados por jornadas limitadas. Em meio às filas de usuários das bicas de água, homens, mulheres e crianças, formavam pequenas rodas em torno da fonte para flanar, cantarolar, beber e jogar. Entre os jogos preferidos que ajudavam a minimizar o tédio da espera, estavam os temidos jogo do bicho e jogo de baralho espanhol denominado de “primeira”.
Carregado com pás, enxadas, foices, machados, serras, cordas, correntes, esquadros, martelos, pregos e querosene, e, rodeado pelos seus cães perdigueiros, Moraes estacionou a carreta e enunciou a proposta de trabalho, prometendo pagar um vintém por dia. Além dessa garantia, o construtor comprometeu-se pelo transporte até o local da obra distante alguns quilômetros do centro da cidade. Quanto à alimentação e possíveis acidentes e ferimentos decorrentes da obra, declarou que era de total responsabilidade do trabalhador. Diante dessas condições e desempregado há meses, o argentino da cidade de Corrientes, Braz Alegre, 35 anos, aceitou a proposta e ofereceu-se ao trabalho.
Alegre tinha experiência neste ramo, trabalhou na reconstrução da ponte sobre o córrego “Chico Preto” na estrada para o distrito do Cadeado e constantemente era chamado pelo construtor Luiz Pastoris. Este último vencedor de muitos contratos de obras públicas nos últimos anos do Império. Todavia eram empregos temporários e desvalorizados, visto que o trabalho associava-se a escravidão e a violência. Uma prática de gente ignorante, pobre e analfabeta, de modo que o valor do dia de trabalho e o pagamento dependiam do interesse do empregador. O Estado, por sua vez, não interferia nesta relação, legitimando explorações, humilhações, espancamentos, condições desumanas de trabalho.
Mesmo desprovido de direitos à aposentadoria e à assistência médica (conquistas sociais que só viriam mais tarde na República durante a Era Vargas), não restava alternativa a Alegre e a tantas pessoas senão submeter-se aos mandos e desmandos dos patrões. Alegre fugiu com sua família da cidade de Corrientes, as margens do rio Paraná, por volta dos anos de 1866 e 1867. Em abril de 1865, a esquadra naval paraguaia e três mil soldados bombardearam, invadiram e saquearam Corrientes, mudando radicalmente a vida da família. Durante a ocupação paraguaia, jovens das cidades de Buenos Aires, Rosário, Córdoba e Santa Fé, bem como de Corrientes, alistaram-se nos batalhões de infantaria e cavalaria do Exercito para recuperar a cidade, mas sem sucesso.

Diante dos saques, dos toques de recolher, das prisões arbitrárias e das violências dos soldados e dos oficiais paraguaios às mulheres e às crianças, a família Alegre não hesitou em fugir. Sem tempo deixaram a estreita rua Santiago Del Estero, nordeste da cidade, onde moravam e tomaram o caminho de Posadas atravessando o rio Uruguai no povoado de San Xavier. Em território brasileiro pernoitaram nas margens de picadas e nos matagais seguindo para Cruz Alta por saberem de sua economia voltada ao comércio de gado, pois há gerações a família dedicava-se a produção de couros em Corrientes.
No entanto, quando chegaram perceberam que reconstruir a vida em Cruz Alta não era como esperavam. A cidade já estava sob os efeitos da guerra, economia estagnada, preços dos alimentos exorbitantes e subscrições para os feridos e os órfãos. Com poucos recursos, pois deixaram às pressas tudo o que tinham em Corrientes, ocuparam as margens de um dos afluentes do rio Panelinha, no bairro da capoeira. A pretensão da família em investir no comércio do couro tornara-se inviável. A alternativa para sobreviver foi trabalhar em madeireiras, olarias, moinhos e outros serviços sazonais.
Assim como Braz Alegre, que fugiu das atrocidades da guerra, muitos uruguaios, paraguaios e brasileiros, oriundos de outros pontos do país, sozinhos ou com seus familiares, buscaram um novo recomeço em Cruz Alta. Todavia, aquelas expectativas iniciais frente à nova e desconhecida terra deu lugar a uma realidade dramática marcada por lutas cotidianas anônimas e silenciosas em prol da sobrevivência. Após seis meses de muito trabalho, a ponte sobre o arroio Nossa Senhora foi concluída e entregue para o trânsito. Braz Alegre, devido o longo tempo de exposição ao sol teve queimaduras no rosto e nos braços, em suas mãos e pés abriram feridas. Novamente desempregado, restou-lhe, no entanto, retornar ao “chafariz da Igreja”...





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