Fabrício Renner de Moura

Graduado e Mestre em História, e, Especialista em Campo Social:práticas/saberes. Nesse espaço busco revisitar discussões e interpretações sobre História regional e local, assim como outras dimensões historiográficas.

domingo, 27 de abril de 2014

A CIDADE DE CRUZ ALTA E A FERROVIA NO SÉCULO PASSADO: UMA RELAÇÃO COTIDIANA .

Desde o final do século XIX, o rufar do trem faz parte do cotidiano de Cruz Alta, serpenteando-se pelos trilhos nos bairros e no centro da cidade, cortando ruas, estremecendo residências, ensurdecendo pessoas. Fascinante ou um empecilho para a dinâmica urbana, o fato é que o trem e a ferrovia estão presentes na memória, no imaginário social e na paisagem urbana de Cruz Alta.
Nomes de ruas e de bairros lembram a presença do universo ferroviário e são evidências da relação cotidiana com os diferentes espaços da cidade. As ruas Gustavo Vouthier e Setembrino de Carvalho, ambos engenheiros da ferrovia, são um exemplo. A “vila Ferroviária”, um dos maiores e mais antigos bairros da cidade com as casas de madeira habilmente detalhadas nas fachadas, a pequena Capela Perpétuo Socorro, o estádio Brasil Siqueira Borges, o Círculo Operário Ferroviário e a Praça Itararé são registros do mundo ferroviário além dos muros da estação.
Cortando campos, desmatando florestas, desabrigando posseiros, destruindo o modo de vida das sociedades indígenas e integrando territórios, o ramal da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande do Sul, chegou a Cruz Alta em novembro de 1894, quando foi inaugurado pela empresa belga Sud Ouest Brésilien, os primeiros 160km do ramal Santa Maria a Marcelino Ramos, ligando Cruz Alta a Santa Maria da Boca do Monte.
O prolongamento desse ramal seguiu por outras cidades do Planalto Médio e foi concluído no rio Uruguai na década de 1910, totalizando a extensão de 535,234Km(Ver: Ana Paula Wickert. Nos caminhos da ferrovia). Doze anos depois, no ano de 1906, o governo federal anunciou a construção, pelo 2º Batalhão Ferroviário, da estrada de ferro Cruz Alta a colônia Ijhuy, abrindo caminho para as localidades da região das missões - Santo Ângelo e Santa Rosa.
Com uma velocidade de cerca de 30 km, o cavalo de ferro, como era chamado na época, transportava cargas e passageiros, assim como, a mensagem de progresso e de civilização. Onde anos antes deslocava-se de carroças, carroções e a trote de cavalo, com o trem, as distâncias diminuíram e ocorreu a unidade regional, interligando o município com seus distritos e zonas colonias. Desse modo, as estações ferroviárias tornaram-se importantes referências não somente na economia, mas nas relações cotidianas e comerciais, assim como, no controle do tempo medido através da chegada e da saída dos trens.
Na estação ferroviária de Cruz Alta não foi diferente. Talvez poucos cruzaltenses tenham presenciado o intenso trânsito de transeuntes, carros e mercadorias no prédio onde hoje é sede do Museu Municipal e da Secretaria de Cultura. Os que acompanharam o auge das atividades ferroviárias, destacam nas suas memórias, o movimento nas imediações da estação e a presença de uma rede comercial constituída de hotéis, pousadas, restaurantes, lojas de roupas, ferrarias, madeireiras, bancos, pequenas vendas, sapatarias, barbearias, depósitos de mercadorias e o terminal rodoviário.
Diante disto, a estação de Cruz Alta era um espaço que recebia pessoas de todos os segmentos sociais. Tanto foi assim, que pela plataforma passaram candidatos a presidência da República, governadores, Ministros de Estado e marechais do exército cruzando-se com usuários anônimos, como trabalhadores da ferrovia, vendedores de doces e de jornais, maleiros, boleeiros, pedintes, cafetões, jogadores, receptadores e meretrizes.
Para estar a par das novidades, acontecimentos e intrigas da cidade, bastava ir até a viação férrea, expressão usada na época pelos moradores, e integrar-se de tudo: o embarque dos recém-casados no trem paulista; a chegada de alguém muito importante sob o som de melodias de bandas marciais e dos fogos de artifícios; as notícias policiais, com a transferência de presos para a Capital; a eclosão de guerras com embarque de militares das unidades da cidade rumo ao combate; a chegada de famílias rodeadas de bagagens chamando a atenção; quem foi admitido e transferido dentro da empresa, entre outros.
Passageiros, curiosos, trabalhadores sazonais e operários da ferrovia misturavam-se com os sons da locomotiva, a fumaça, as malas e demais cargas. Era um intenso “vai e vem” de pessoas com suas vozes, sorrisos, choros e gritos estridentes até o momento da partida das composições.
Entre tantas pessoas, encontramos algumas que faziam da ferrovia e das áreas adjacentes parte de suas vidas. Não eram somente os passageiros, mas muitos personagens corriqueiros do cotidiano, como os pequenos comerciantes, os vendedores de rapaduras, os aguadeiros, os mandaletes, os boleeiros, os pedintes, os meninos cuidadores de cavalos, as prostitutas, os desocupados e os batedores de carteiras.
Ao longo de um século XX, a região da estação ferroviária tornou-se um importante centro comercial e de sustento para muitas pessoas. Fosse com empregos regulares ou com formas de sustento informais, nem sempre alinhadas com as leis, o que se observava era um cenário urbano constituído por multiplicidade de experiências sociais. No entanto, mesmo com toda a importância comercial e o intenso fluxo de pessoas, de carros de cargas e de mercadorias, a área da estação ainda apresentava características rurais.
Seus potreiros, campos abertos, matagais, córregos, ruas embarradas e pútridas, ainda estavam presentes, coexistindo com a velocidade, a fluidez e as mudanças proporcionadas pelas invenções modernas que não cessavam de chegar na cidade. O trem, a energia elétrica, as linhas telegráficas e telefônicas e os veículos Ford Overland e Fiat 501 colonial representavam o progresso e a civilização, assim como a superação das amarras do passado, como o semi - isolamento territorial vivido por um século.
A praça Itararé, localizada em frente ao prédio da estação, apesar de pequena, talvez um dos menores logradouros públicos de Cruz Alta, era um ponto de reunião de boleeiros, engraxates, jogadores do bicho e do vintém, meretrizes, oportunistas, meninos e meninas dançando e cantarolando, damas e cavaleiros finamente trajados. É neste local que o boleeiro Antônio Rocha e o mensageiro conhecido como Arruda, estacionavam uma carruagem que alugavam de um comerciante da cidade.
Em busca de clientes, geralmente passageiros, eles, saiam oferecendo seus serviços logo que uma locomotiva parava, recolhendo as bagagens e encaminhando os passageiros até a carruagem, ou coche. O movimento de clientes dependia das locomotivas que chegavam e saiam de hora em hora. Assim, nos intervalos, Rocha e Arruda, frequentavam bares, bancas de jogos e restaurantes das proximidades da estação. Além de Rocha e Arruda, dezenas de trabalhadores dedicavam-se a esta atividade.
Não muito distante da praça Itararé, encontrava-se com a discrição de sempre, a meretriz Nair, ela usava vestido vermelho e tinha os cabelos ondulados, com cerca de 30 anos. Era conhecida por portar uma navalha na bolsa para defender-se das constantes agressões físicas de clientes, cafetões e mulheres rivais, como por exemplo, a Vanderleia que fazia ponto nas imediações da estação rodoviária.
Pela manhã, a meretriz com seu habitual cigarro entre os dedos, fazia da estação o ponto de encontro para seus programas, e então, acompanhada do cliente, dirigiam-se até um dos quartos alugados nas proximidades. Após o trabalho, seguia para sua casa nas proximidades do cemitério público, onde novamente no início da tarde daria continuidade a sua rotina dedicando-se a serviços sazonais e agendando novos clientes.
Durante muitos anos Nair utilizou a praça Itararé e suas imediações para realizar programas e garantir o seu sustento.
Na porta de entrada da estação ferroviária, com um comportamento agressivo e modos obscenos estava Gemina Precci,aparentando ser muito jovem e vestida com roupas sujas, pouco se sabia sobre ela. Alguns passageiros disseram que a conheciam de Santa Bárbara do Sul, cidade próxima de Cruz Alta, e que de alguma maneira Gemina conseguira embarcar em um trem. Entretanto, os guardas da estação afirmavam que era uma ex-interna do Hospital psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre.
O fato é que os guardas e porteiros da ferrovia já haviam informado a polícia sobre a moça. Autora de agressões físicas, gritos e tentativas de furtos, Precci acabou detida e encaminhada a cadeia pública por estar atacada de alienação. Confirmada sua primeira internação menos de uma semana de detenção, seu destino já havia sido traçado. De volta a estação ferroviária, agora sob a escolta de dois guardas municipais, a ordem era levá-la até o Hospital Psiquiátrico São Pedro.
As vinte três horas, na plataforma da estação incomunicável e algemada ela fora conduzida em um vagão reservado até a capital do estado. Desse momento em diante, não existem mais registros da presença de Gemina nas imediações da ferrovia, nem em outras dependências da cidade.
Em direção a praça da intendência, nas esquinas das ruas do Comércio(hoje rua Pinheiro Machado) e Mariz e Barros, encontravam-se Pedro Nogueira e Manoel Bezerra. Atentos aos movimentos das locomotivas, ambos sobreviviam das atividades da ferroviárias. Pedro era barbeiro, proprietário do salão Paraizo, e parte de sua clientela advinha dos trabalhadores da ferrovia, como telegrafistas, escriturários, bagageiros, maquinistas, foguistas, ferreiros e mecânicos. Nas conversas, inteirava-se dos horários dos trens e de quem passava pela gare da estação.
Atravessando a rua, de frente a praça, Manoel Bezerra como de costume varria a densa poeira avermelhada acumulada nas calçadas e janelas. Recepcionista do Hotel Espellet que era um dos estabelecimentos mais elegantes do ramo hoteleiro na cidade. Frequentemente, Manoel conhecia artistas que vinham se apresentar nos cine - teatros da cidade, bem como políticos e empresários. Costumava receber dos clientes gorjetas que auxiliavam no seu orçamento e possibilitavam algumas diversões nas madrugadas da cidade.
Mas, quem não estivesse disposto a gastar muito dinheiro para hospedar-se na cidade poderia procurar o hotel Gonçalves, de propriedade do senhor Flori Gonçalves. Com uma localização privilegiada, frente com a estação rodoviária e próximo do centro e da ferrovia, o hotel recebia muitos hóspedes. Todos os dias, cedo da manhã, os jovens Ataíde e o Mudo, apresentavam-se a Doralina Gonçalves, dona do hotel, para carregar as bagagens dos clientes até as estações rodoviária e ferroviária.
Dia e noite, os dois conduziam seus carrinhos de bagagens, cantarolando pelas ruas e cumprimentando moradores e comerciantes. A procura por parte dos moradores das ruas do Comercio, Gal. Câmara e Gal. Osório, pelos serviços dos meninos ocorria com intensa frequência. Pedidos como maços de cigarros, bebidas alcoólicas caras, alucinógenos e revistas pornográficas, movimentavam um dinâmico comércio ilegal. Ataíde e Mudo, possuíam conexões com pessoas que conseguiam furtar estes produtos dos vagões e depósitos da ferrovia ,e, das casas comerciais da cidade.
Outro ponto comercial próximo da estação ferroviária e muito procurado era o armazém de Alberto Schimtz. Vendia-se de tudo: roupas, calçados, arroz, feijão, farinha, milho, rapaduras, tabaco, objetos de montaria e couro, sementes, ferramentas e água ardente. A freguesia era variada, de moradores das imediações, como as crianças que compravam balas e merengues, até pequenos vendedores, viajantes, ex-combatentes, oportunistas e cafetões que jogavam cartas e dominó regado a muita bebida.
Seu Alberto, como era chamado pelos clientes, procurava não tomar partido dos assuntos discutidos no armazém, tão pouco, dificultar a presença de algumas pessoas, mas quando havia exageros no consumo de bebidas e os jogos acabavam em conflitos, solicitava a presença da polícia ou ele mesmo os expulsava armado com sua carabina spencer muito usada pelo Exército brasileiro na guerra do Paraguai.
O grande fluxo de mercadorias e transeuntes, tornava a região alvo de furtos e brigas. As cercas em trono do pátio da ferrovia, limitando o aceso a plataforma de embarque, escritórios, armazéns e oficinas eram de fácil transposição e os passageiros estavam vulneráveis a furtos na área de embarque. A vigilância dentro do complexo estava a cargo da empresa que agia com deficiência não conseguindo impedir roubos de bagagens e desvios de mercadorias.
No lado de fora do complexo ferroviário não era diferente. O patrulhamento exercido pelas guardas púbicas nas ruas e as diligências nos bares e nas casas de jogos das imediações não impediam a prática de crimes. O baixo efetivo, a falta de equipamentos e de organização de ações coordenadas e regulares, acabavam contribuindo para tornar a região insegura dia e noite.
Com frequência ouviam-se pessoas gritando ou perseguindo os batedores de carteiras que rapidamente escondiam-se nos becos e nos matagais das proximidades. Nos depósitos da estação, funcionários denunciavam a falta de latas de graxa, sacos de alimentos e equipamentos ferroviários. O armazém do senhor Alberto convivia com o furto de alguns produtos, principalmente as frutas que ficavam expostas na calçada em grandes cestas de palhas e as cebolas e ferramentas penduradas com barbantes nas duas portas do prédio.
Os embates corporais eram regulares e impressionavam pela violência empregada entre os contendores. Por exemplo, a briga na praça Itararé, entre os jovens Diniz Rodrigues e João Pereira, ambos trabalhadores sazonais. A desavença surgiu em um jogo de cartas no restaurante do hotel Rio Grandense, na rua Gal. Câmara, acesso ao bairro ferroviário. No local a contenda não passou de farpas verbais e ameaças, graças a intervenção dos demais usuários das mesas de jogos.
Porém, dias após o fato, Diniz encontrou João na praça Itararé, ambos estavam a cavalo, dando inicio a uma perseguição que ocasionou na queda de João ao solo após o golpe de relho que levou na cabeça. Com a queda, João não conseguiu impedir Diniz de descer do cavalo e dar início uma sessão de espancamento, ferindo-o na cabeça e nas mãos.
A briga durou alguns minutos e chamou a atenção de todos que passavam pela redondeza. Dona Maria Luíza, diante da violência, começou a clamar ajuda para cessar o embate. Já o empregado da Casa Aita, Luciano Bonini, observou tudo do balcão, enquanto o menino, Americano Lopes, que estava a caminho do potreiro para recolher suas vacas, correu assustado. Finalmente o biscateiro José Lucas dos Santos, interferiu no conflito separando-os. O resultado da briga para Diniz fora um profundo ferimento abdominal produzido por uma faca que João portava na cintura.
A ferrovia não se limitava ao transporte de cargas e de passageiros, como observamos sua influência ultrapassava os muros da estação. Em uma relação muito mais complexa, o “cavalo de ferro”, integrou territórios da região, consolidou redes de comunicações, criou expectativas progressistas, e, possibilitou a circulação de pessoas, matérias-primas, produtos, informações e capitais. E, finalmente, moldou a geografia espacial e social da cidade.
E os personagens que trabalhavam no “lado de dentro” do complexo ferroviário? Quem eram eles? Que setores trabalhavam? A que riscos estavam expostos? O que pensavam? Tais questionamentos abordaremos no próximo texto.


                                             



                                   Trabalhadores na construção do trecho da estrada de ferro                                   Cruz Alta – colônia de Ijuhy (Memórias Ferroviárias VFRGS).



                                    Frente da estação ferroviária de Cruz Alta (Foto do autor.)


                       Estação ferroviária em 1905


                                             Plataforma da estação em 2013 (Foto do autor)


                                           

                                              Plataforma de embarque e desembarque                                                                                                          (Foto: Blog Cruzaltino)



Frente da estação, 2013(foto do autor)




Praça Itararé, 2013 (foto do autor)





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