Fabrício Renner de Moura

Graduado e Mestre em História, e, Especialista em Campo Social:práticas/saberes. Nesse espaço busco revisitar discussões e interpretações sobre História regional e local, assim como outras dimensões historiográficas.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

MANUEL PROPÍCIO ALVES: VETERANO DA GUERRA DO PARAGUAI E INIMIGO PÚBLICO.

Rua Itaparica(hoje Barão do Rio Branco), sentido norte da cidade caminho para a região dos imigrantes e colonos italianos. Por volta das 20 horas, em frente ao movimentado armazém de secos e molhados do comerciante espanhol José Soares, dois homens conhecidos na área, aparentemente embriagados, discutem e gesticulam chamando a atenção de vizinhos e frequentadores do estabelecimento. Entre palavras de baixo calão, gritos e acusações, os oponentes trocam empurrões e socos, até que um violento golpe de porrete foi desferido levando um deles ao chão.
Leão Velloso Braz, 65 anos, ferido na região frontal da cabeça, sem forças para reagir levantou-se e ensanguentado correu em direção a rua Coronel Martins na ladeira de acesso ao bairro da capoeira onde morava. Horas depois, morreu de traumatismo craniano no quarto de pensão que alugava. O agressor, Manuel Propício, 78 anos, logo após a briga escondeu o porrete em seu casaco preto e tratou de fugir para a casa que alugava nos arredores do Cemitério Público. Segundo as testemunhas arroladas na investigação policial, momentos antes do embate, Propício entrou no armazém munido de seu porrete e pediu a Soares uma garrafa de cachaça.
Durante uns goles e outros para se aquecer, pois em junho de 1921, o inverno prenunciava-se rigoroso, Alves observava atento de dentro do armazém o movimento da rua. De repente, ao avistar Braz, dirigiu-se apressadamente ao encontro deste dando inicio a briga. Manoel Alves e Leão Braz, homens pobres e com poucas oportunidades, tinham em comum o apresso por jogos. Costumavam frequentar mesas de carteados, as carpetas, situadas nos bairros barro preto e capoeira, e, canchas do jogo de osso espalhadas nas travessas do centro, nas margens de córregos e nos barrancos das estradas de ferro da cidade .
        Os jogos possuíam um duplo sentido na vida destes homens. De um lado, havia o aspecto cultural do universo popular, pois com a prática satisfaziam o prazer de apostar e de arriscar o pouco que tinham. E de outro, a necessidade material, já que o dinheiro e os objetos adquiridos nas apostas ajudavam a sobreviver. É necessário considerar que Alves e Braz viviam na extrema pobreza prestando serviços temporários e pouco remunerados nas casas comerciais e nos currais da região. Assim, arriscar-se em ambientes tensos regados a bebidas e sujeitos a batidas policiais, era um risco, mas poderia ser mais uma forma de minimizar a pobreza.
          Manoel Propício Alves, após evadir-se do local fugiu para a cidade de São Luiz Gonzaga. Na condição de foragido e principal suspeito do assassinato, coube ao juiz solicitar a policia desta cidade a prisão de Alves. Depois de várias fugas, finalmente ele foi detido e enviado a cadeia pública de Cruz Alta. Perante o delegado de polícia declarou não saber os motivos da briga, visto que estava bêbado. E que sequer conhecia Leão Veloso Braz. Em juízo manteve as declarações e ouviu de José Soares, uma das testemunhas do processo, a acusação de que era um homem de má procedência.
          Veterano da Guerra do Paraguai, a trajetória de Alves em Cruz Alta assemelha-se a de muitos brasileiros, argentinos, uruguaios e paraguaios que buscavam em terras distantes o recomeço de suas vidas. De origem pernambucana, fixou residência em Cruz Alta após o conflito, por volta dos anos de 1869 e 1870. Durante um tempo viveu no local conhecido como cercado velho (hoje regiao norte das ruas Voluntários da Pátria e Procópio Gomes) nas proximidades da cadeia pública. Casou-se e mudou-se para o norte da cidade.
         Sua participação na guerra começou quando soube do decreto imperial n. 3. 371 de 07 de janeiro de 1865, garantindo aos voluntários o direito a dois alqueires e meio de terra, e, salário mensal às famílias dos soldados mortos. Mesmo sem nunca ter manejando um fuzil, alistou-se em Pernambuco deixando pai, mãe e irmãos para sempre. Lutou por quatro anos no Paraguai, enfrentando o inimigo no campo de batalha, as epidemias de sarna e de varíola, a fome e o frio. Dispensado da guerra em dezembro de 1869, não recebeu as gratificações e os trezentos réis diários conforme prometido pelo decreto.
           Sem condições de reivindicar os benefícios prometidos em terras paraguaias, retornou para o Brasil. Já estabelecido em Cruz Alta e com poucos recursos financeiros para fazer valer os direitos prometidos, Alves até que tentou algum movimento mas esbarrou na burocracia imperial que exigia uma infinidade de requerimentos, petições e documentos comprobatórios da participação dele no conflito. Na verdade, o fim da guerra do Paraguai iniciou outro conflito para o ex-combatente. Os inimigos da vez eram o esquecimento por parte da sociedade de sua defesa ao país, as deslealdades do imperador e demais governantes, a extrema pobreza e a marginalização social.
            O julgamento de Manoel Propício Alves, na sala de sessões da intendência de Cruz Alta, não limitou-se aos eventos que terminaram com o assassinato de Leão Velloso Braz. Convém ressaltar que durante todo o processo criminal ele confessou seu crime. Assim, algemado e cabisbaixo, Alves ouviu em silêncio a humilhação social que foi exposto pelo rito judicial. Afinal, além de réu confesso, Alves reunia todas as condições de um indivíduo perigoso: pobre, mulato, analfabeto, desempregado e morador do subúrbio, e ainda, possuir modos de vida que destoam dos modelos ditos civilizados.
        Durante o depoimento do Delegado de Polícia, Dinarte Vargas, o mesmo que apoiava de maneira violenta a politica Firminista em Cruz Alta, declarou ao juiz e aos jurados, que o réu costumava promover tumultos nas ruas e nos demais espaços da cidade. E ainda era conhecido “por todos pelo seu completo estado de embriaguez”. O advogado de defesa de Alves, José Vasconcelos Pinto, diante da intenção da promotoria pública e do Delegado de polícia em convencer os jurados a condenarem seu cliente, tratou de declarar que o réu era “privado de sentidos e intelligencia” e por isso praticou o crime.

            Após réplicas e tréplicas da promotoria e da defesa, Manoel Propício Alves, 78 anos, veterano da Guerra do Paraguai, foi absolvido e condenado a pagar os custos do processo. Livre da cela suja e úmida da cadeia, o veterano viveu a sombra da pior sentença que uma pessoa pode ter, a condenação pública.   

UM CORRENTINO SOBREVIVENTE DA GUERRA DO PARAGUAI.

 Após dias à procura de uma ocupação remunerada, o diarista Braz Alegre conseguiu um trabalho nas obras de reconstrução da ponte sobre o arroio Nossa Senhora, região oeste da cidade. Destruída pelas enchentes de março de 1886, os danos à ponte impediram o trânsito de carretas e de carruagens à estrada do Faxinal, importante via de ligação da vila de Cruz Alta às matas dos Rios Conceição e Ijuí. Para executar a obra, o poder público municipal à época, contratou o construtor André Antônio Moraes, que apresentou o orçamento “mais em conta” e o prazo de seis meses para conclusão da ponte. Conforme o contrato, cabia a Moraes providenciar e bancar as ferramentas e a mão- de- obra.
Com sua carreta de dois eixos e puxada por um cavalo, Moraes percorreu as ruas da cidade a procura de trabalhadores. Como de costume, dirigiu-se a fonte de água pública conhecida como “chafariz da Igreja” (Hoje esquinas das ruas João Manuel e Venâncio Aires), local frequentado por muitos trabalhadores dispostos a ganhar alguns trocados por jornadas limitadas. Em meio às filas de usuários das bicas de água, homens, mulheres e crianças, formavam pequenas rodas em torno da fonte para flanar, cantarolar, beber e jogar. Entre os jogos preferidos que ajudavam a minimizar o tédio da espera, estavam os temidos jogo do bicho e jogo de baralho espanhol denominado de “primeira”.
Carregado com pás, enxadas, foices, machados, serras, cordas, correntes, esquadros, martelos, pregos e querosene, e, rodeado pelos seus cães perdigueiros, Moraes estacionou a carreta e enunciou a proposta de trabalho, prometendo pagar um vintém por dia. Além dessa garantia, o construtor comprometeu-se pelo transporte até o local da obra distante alguns quilômetros do centro da cidade. Quanto à alimentação e possíveis acidentes e ferimentos decorrentes da obra, declarou que era de total responsabilidade do trabalhador. Diante dessas condições e desempregado há meses, o argentino da cidade de Corrientes, Braz Alegre, 35 anos, aceitou a proposta e ofereceu-se ao trabalho.
Alegre tinha experiência neste ramo, trabalhou na reconstrução da ponte sobre o córrego “Chico Preto” na estrada para o distrito do Cadeado e constantemente era chamado pelo construtor Luiz Pastoris. Este último vencedor de muitos contratos de obras públicas nos últimos anos do Império. Todavia eram empregos temporários e desvalorizados, visto que o trabalho associava-se a escravidão e a violência. Uma prática de gente ignorante, pobre e analfabeta, de modo que o valor do dia de trabalho e o pagamento dependiam do interesse do empregador. O Estado, por sua vez, não interferia nesta relação, legitimando explorações, humilhações, espancamentos, condições desumanas de trabalho.
Mesmo desprovido de direitos à aposentadoria e à assistência médica (conquistas sociais que só viriam mais tarde na República durante a Era Vargas), não restava alternativa a Alegre e a tantas pessoas senão submeter-se aos mandos e desmandos dos patrões. Alegre fugiu com sua família da cidade de Corrientes, as margens do rio Paraná, por volta dos anos de 1866 e 1867. Em abril de 1865, a esquadra naval paraguaia e três mil soldados bombardearam, invadiram e saquearam Corrientes, mudando radicalmente a vida da família. Durante a ocupação paraguaia, jovens das cidades de Buenos Aires, Rosário, Córdoba e Santa Fé, bem como de Corrientes, alistaram-se nos batalhões de infantaria e cavalaria do Exercito para recuperar a cidade, mas sem sucesso.

Diante dos saques, dos toques de recolher, das prisões arbitrárias e das violências dos soldados e dos oficiais paraguaios às mulheres e às crianças, a família Alegre não hesitou em fugir. Sem tempo deixaram a estreita rua Santiago Del Estero, nordeste da cidade, onde moravam e tomaram o caminho de Posadas atravessando o rio Uruguai no povoado de San Xavier. Em território brasileiro pernoitaram nas margens de picadas e nos matagais seguindo para Cruz Alta por saberem de sua economia voltada ao comércio de gado, pois há gerações a família dedicava-se a produção de couros em Corrientes.
No entanto, quando chegaram perceberam que reconstruir a vida em Cruz Alta não era como esperavam. A cidade já estava sob os efeitos da guerra, economia estagnada, preços dos alimentos exorbitantes e subscrições para os feridos e os órfãos. Com poucos recursos, pois deixaram às pressas tudo o que tinham em Corrientes, ocuparam as margens de um dos afluentes do rio Panelinha, no bairro da capoeira. A pretensão da família em investir no comércio do couro tornara-se inviável. A alternativa para sobreviver foi trabalhar em madeireiras, olarias, moinhos e outros serviços sazonais.
Assim como Braz Alegre, que fugiu das atrocidades da guerra, muitos uruguaios, paraguaios e brasileiros, oriundos de outros pontos do país, sozinhos ou com seus familiares, buscaram um novo recomeço em Cruz Alta. Todavia, aquelas expectativas iniciais frente à nova e desconhecida terra deu lugar a uma realidade dramática marcada por lutas cotidianas anônimas e silenciosas em prol da sobrevivência. Após seis meses de muito trabalho, a ponte sobre o arroio Nossa Senhora foi concluída e entregue para o trânsito. Braz Alegre, devido o longo tempo de exposição ao sol teve queimaduras no rosto e nos braços, em suas mãos e pés abriram feridas. Novamente desempregado, restou-lhe, no entanto, retornar ao “chafariz da Igreja”...





UM HERÓI DA GUERRA DO PARAGUAI ESQUECIDO DE NOSSA HISTÓRIA.

 Na madruga de 23 de julho de 1925, Luciano Lemes morreu de frio nas escadarias da Cadeia Pública da cidade de Cruz Alta. Senhor de tenra idade, rosto avermelhado e envelhecido, barba grisalha e andar lento, Luciano era um ex-combatente da Guerra do Paraguai(1865-1870). Conhecido na comunidade por narrar suas histórias sobre o campo de batalha, o veterano, acompanhado de seus cães, caminhava pelo centro da cidade e no largo da Catedral do Divino adquirindo roupas, comidas, bebidas e alguns trocados.
A morte do velho soldado espalhara-se ao amanhecer e causou certa comoção na cidade. Por pena, arrependimento ou remorso algumas pessoas compareceram no local ascendendo velas e orando; a imprensa, a mesma que cobrava da polícia e do governo municipal ações para deter a presença de pessoas pobres nos espaços do centro, qualificou Luciano como verdadeiro patriota. Um homem que bravamente lutou nos campos paraguaios pela sua terra, mas suas qualidades foram cruelmente esquecidas.
A trajetória de Luciano Lemes no conflito mais violento da América do Sul, iniciou quando alistou-se em uma das milícias e Corpos de Voluntários organizados na sede e nos distritos de Cruz Alta. Como, por exemplo, o Corpo de Voluntários mobilizado pelo Tenente-Coronel João Batista Vidal de Almeida Pillar, em 1865, e a 4° Divisão de Cavalaria comandada pelo Brigadeiro José Gomes Portinho, em 1866. Tais divisões da Guarda Nacional marcharam para a fronteira oeste com o objetivo de expulsar as tropas paraguaias das cidades de São Borja, Itaqui e Uruguaiana. Cercados nos banhados e nos capões da região, os soldados paraguaios foram derrotados no combate do Butuí.
Além do entusiasmo e da euforia característicos do inicio de uma guerra, Luciano e outros jovens pobres do país buscaram no alistamento a rara oportunidade de melhorar de condição de vida. Para mobilizar as pressas uma força militar, diga-se passagem despreparada, capaz de enfrentar o exército do Paraguai, o governo imperial prometeu aos voluntários e milicianos soldos, gratificações diárias, doação de terras, bonificações por atos de heroísmo nos combates, pensões a viúvas, órfãos e combatentes com traumas físicos, e, possibilidades de seguir a carreira militar ou em órgãos públicos.
De volta ao Brasil, entre os anos 1869-1870, Luciano não foi recebido com honras e agradecimentos por sua bravura. Encontrou um país em crise endividado com a guerra e um índice inflacionário bastante acelerado. A gleba de terra, as gratificações e o emprego público prometidos pelo governo durante a formação dos Corpos Provisórios na cidade, Luciano nunca recebeu. Desse modo, a miséria aprofundara-se. Durante 56 anos, o veterano aguardou ansioso o pagamento dos soldos por parte do Comando Militar de Porto Alegre. Todavia, seu nome nunca constava na relação dos beneficiados.
Abandonado pelo Estado, não restou outra alternativa ao velho combatente senão sobreviver de atividades informais e mal remuneradas os chamados “bicos”. Sem família, residência e perspectiva de vida, a bebida, o cigarro e a morfina, tornaram-se as formas apropriadas para fugir da dura realidade. Tais substâncias, também usadas nos campos pantanosos da guerra, ajudavam Luciano a suportar as dificuldades materiais, as mágoas, as decepções, as dores da alma e do corpo, e, as indiferenças da sociedade. Hostilizado pela opinião pública por ser morador de rua, frequentemente era detido pela polícia ou internado de forma compulsória em hospitais e manicômios do estado.
O desprezo parece ser o modo do Estado brasileiro e da sociedade civil tratarem os veteranos da Guerra do Paraguai e de outros conflitos armados que o país envolvera-se ao longo da História. Ao contrário de Luciano Lemes que viveu abandonado e pobre, os oficiais da Guarda Nacional, oriundos de famílias estancieiras e politicamente influentes, foram reconhecidos como heróis e receberam do Império terras as margens dos Rios Uruguai, Ijuí e Conceição como forma de pagamento por seus serviços a pátria.