Desde o final do
século XIX, o rufar do trem faz parte do cotidiano de Cruz Alta,
serpenteando-se pelos trilhos nos bairros e no centro da cidade,
cortando ruas, estremecendo residências, ensurdecendo pessoas.
Fascinante ou um empecilho para a dinâmica urbana, o fato é que o
trem e a ferrovia estão presentes na memória, no imaginário social
e na paisagem urbana de Cruz Alta.
Nomes de ruas e de bairros lembram a
presença do universo ferroviário e são evidências da relação
cotidiana com os diferentes espaços da cidade. As ruas Gustavo
Vouthier e Setembrino de Carvalho, ambos engenheiros da ferrovia, são
um exemplo. A “vila Ferroviária”, um dos maiores e mais antigos
bairros da cidade com as casas de madeira habilmente detalhadas nas
fachadas, a pequena Capela Perpétuo Socorro, o estádio Brasil
Siqueira Borges, o Círculo Operário Ferroviário e a Praça Itararé
são registros do mundo ferroviário além dos muros da estação.
Cortando
campos, desmatando florestas, desabrigando posseiros, destruindo o
modo de vida das sociedades indígenas e integrando territórios, o
ramal da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande do Sul, chegou a Cruz
Alta em novembro de 1894, quando foi inaugurado pela empresa belga
Sud
Ouest Brésilien,
os primeiros 160km do ramal Santa Maria a Marcelino Ramos, ligando
Cruz Alta a Santa Maria da Boca do Monte.
O prolongamento desse
ramal seguiu por outras cidades do Planalto Médio e foi concluído
no rio Uruguai na década de 1910, totalizando a extensão de
535,234Km(Ver: Ana Paula Wickert. Nos
caminhos da ferrovia). Doze anos depois, no ano de 1906, o
governo federal anunciou a construção, pelo 2º Batalhão
Ferroviário, da estrada de ferro Cruz Alta a colônia Ijhuy,
abrindo caminho para as localidades da região das missões - Santo
Ângelo e Santa Rosa.
Com
uma velocidade de cerca de 30 km, o cavalo
de ferro,
como era chamado na época, transportava cargas e passageiros, assim
como, a mensagem de progresso e de civilização. Onde anos antes
deslocava-se de carroças, carroções e a trote de cavalo, com o
trem, as distâncias diminuíram e ocorreu a unidade regional,
interligando o município com seus distritos e zonas colonias. Desse
modo, as estações ferroviárias tornaram-se importantes referências
não somente na economia, mas nas relações cotidianas e comerciais,
assim como, no controle do tempo medido através da chegada e da
saída dos trens.
Na estação
ferroviária de Cruz Alta não foi diferente. Talvez poucos
cruzaltenses tenham presenciado o intenso trânsito de transeuntes,
carros e mercadorias no prédio onde hoje é sede do Museu Municipal
e da Secretaria de Cultura. Os que acompanharam o auge das atividades
ferroviárias, destacam nas suas memórias, o movimento nas
imediações da estação e a presença de uma rede comercial
constituída de hotéis, pousadas, restaurantes, lojas de roupas,
ferrarias, madeireiras, bancos, pequenas vendas, sapatarias,
barbearias, depósitos de mercadorias e o terminal rodoviário.
Diante
disto, a estação de Cruz Alta era um espaço que recebia pessoas de
todos os segmentos sociais. Tanto foi assim, que pela plataforma
passaram candidatos a presidência da República, governadores,
Ministros de Estado e marechais do exército cruzando-se com usuários
anônimos, como trabalhadores da ferrovia, vendedores de doces e de
jornais, maleiros, boleeiros, pedintes, cafetões, jogadores,
receptadores e meretrizes.
Para estar a par das
novidades, acontecimentos e intrigas da cidade, bastava ir até a
viação férrea, expressão
usada na época pelos moradores, e integrar-se de tudo: o embarque
dos recém-casados no trem paulista; a chegada de alguém
muito importante sob o som de melodias de bandas marciais e dos fogos
de artifícios; as notícias policiais, com a transferência de
presos para a Capital; a eclosão de guerras com embarque de
militares das unidades da cidade rumo ao combate; a chegada de
famílias rodeadas de bagagens chamando a atenção; quem foi
admitido e transferido dentro da empresa, entre outros.
Passageiros, curiosos, trabalhadores sazonais e operários da
ferrovia misturavam-se com os sons da locomotiva, a fumaça, as malas
e demais cargas. Era um intenso “vai e vem” de pessoas com suas
vozes, sorrisos, choros e gritos estridentes até o momento da
partida das composições.
Entre
tantas pessoas,
encontramos
algumas que faziam da ferrovia e das áreas adjacentes parte de suas
vidas. Não eram somente os passageiros, mas muitos personagens
corriqueiros do cotidiano, como os pequenos comerciantes, os
vendedores
de rapaduras, os aguadeiros, os mandaletes, os boleeiros, os
pedintes, os meninos cuidadores de cavalos, as prostitutas, os
desocupados e os batedores
de carteiras.
Ao
longo de um século XX, a região da estação ferroviária tornou-se
um importante centro comercial e de sustento para muitas pessoas.
Fosse com empregos regulares ou com formas de sustento informais, nem
sempre alinhadas com as leis, o que se observava era um cenário
urbano constituído por multiplicidade de experiências sociais. No
entanto, mesmo com toda a importância comercial e o intenso fluxo de
pessoas, de carros de cargas e de mercadorias, a área da estação
ainda apresentava características rurais.
Seus
potreiros, campos abertos, matagais, córregos, ruas embarradas e
pútridas, ainda estavam presentes, coexistindo com a velocidade, a
fluidez e as mudanças proporcionadas pelas invenções modernas que
não cessavam de chegar na cidade. O trem, a energia elétrica, as
linhas telegráficas e telefônicas e os veículos Ford
Overland e
Fiat 501 colonial representavam
o progresso e a civilização, assim como a superação das amarras
do passado, como o semi - isolamento territorial vivido por um
século.
A
praça Itararé, localizada em
frente ao prédio da estação, apesar de pequena, talvez um dos
menores logradouros públicos de Cruz Alta, era um ponto de reunião
de boleeiros, engraxates, jogadores do bicho
e do vintém,
meretrizes, oportunistas, meninos e meninas dançando e cantarolando,
damas e cavaleiros finamente trajados. É neste local que o boleeiro
Antônio Rocha e o mensageiro conhecido como Arruda, estacionavam uma
carruagem que alugavam de um comerciante da cidade.
Em busca de
clientes, geralmente passageiros, eles, saiam oferecendo seus
serviços logo que uma locomotiva parava, recolhendo as bagagens e
encaminhando os passageiros até a carruagem, ou coche. O movimento
de clientes dependia das locomotivas que chegavam e saiam de hora em
hora. Assim, nos intervalos, Rocha e Arruda, frequentavam bares,
bancas de jogos e restaurantes das proximidades da estação. Além
de Rocha e Arruda, dezenas de trabalhadores dedicavam-se a esta
atividade.
Não muito distante da
praça Itararé, encontrava-se com a discrição de sempre, a
meretriz Nair, ela usava vestido vermelho e tinha os cabelos
ondulados, com cerca de 30 anos. Era conhecida por portar uma navalha
na bolsa para defender-se das constantes agressões físicas de
clientes, cafetões e mulheres rivais, como por exemplo, a Vanderleia
que fazia ponto nas imediações da estação rodoviária.
Pela manhã, a
meretriz com seu habitual cigarro entre os dedos, fazia da estação
o ponto de encontro para seus programas, e então, acompanhada do
cliente, dirigiam-se até um dos quartos alugados nas proximidades.
Após o trabalho, seguia para sua casa nas proximidades do cemitério
público, onde novamente no início da tarde daria continuidade a sua
rotina dedicando-se a serviços sazonais e agendando novos clientes.
Durante muitos anos Nair
utilizou a praça Itararé e suas imediações para realizar
programas e garantir o seu sustento.
Na porta de entrada da
estação ferroviária, com um comportamento agressivo e modos
obscenos estava Gemina Precci,aparentando ser muito jovem e vestida
com roupas sujas, pouco se sabia sobre ela. Alguns passageiros
disseram que a conheciam de Santa Bárbara do Sul, cidade próxima de
Cruz Alta, e que de alguma maneira Gemina conseguira embarcar em um
trem. Entretanto, os guardas da estação afirmavam que era uma
ex-interna do Hospital psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre.
O fato é que os guardas
e porteiros da ferrovia já haviam informado a polícia sobre a moça.
Autora de agressões físicas, gritos e tentativas de furtos, Precci
acabou detida e encaminhada a cadeia pública por estar atacada de
alienação. Confirmada sua primeira internação menos de uma
semana de detenção, seu destino já havia sido traçado. De volta a
estação ferroviária, agora sob a escolta de dois guardas
municipais, a ordem era levá-la até o Hospital Psiquiátrico São
Pedro.
As vinte três horas, na
plataforma da estação incomunicável e algemada ela fora conduzida
em um vagão reservado até a capital do estado. Desse momento em
diante, não existem mais registros da presença de Gemina nas
imediações da ferrovia, nem em outras dependências da cidade.
Em direção a praça da
intendência, nas esquinas das ruas do Comércio(hoje rua Pinheiro
Machado) e Mariz e Barros, encontravam-se Pedro Nogueira e Manoel
Bezerra. Atentos aos movimentos das locomotivas, ambos sobreviviam
das atividades da ferroviárias. Pedro era barbeiro, proprietário do
salão Paraizo, e parte de
sua clientela advinha
dos trabalhadores da ferrovia, como telegrafistas, escriturários,
bagageiros, maquinistas, foguistas, ferreiros e mecânicos. Nas
conversas, inteirava-se dos horários dos trens e de quem passava
pela gare da estação.
Atravessando
a rua, de frente a praça, Manoel Bezerra como de costume varria a
densa poeira avermelhada acumulada nas calçadas e janelas.
Recepcionista do Hotel Espellet que era um dos
estabelecimentos mais elegantes do ramo hoteleiro na cidade.
Frequentemente, Manoel conhecia artistas que vinham se apresentar nos
cine - teatros da cidade, bem como políticos e empresários.
Costumava receber dos clientes gorjetas que auxiliavam no seu
orçamento e possibilitavam algumas diversões nas madrugadas da
cidade.
Mas, quem não estivesse
disposto a gastar muito dinheiro para hospedar-se na cidade poderia
procurar o hotel Gonçalves, de propriedade do senhor Flori
Gonçalves. Com uma localização privilegiada, frente com a estação
rodoviária e próximo do centro e da ferrovia, o hotel recebia
muitos hóspedes. Todos os dias, cedo da manhã, os jovens Ataíde e
o Mudo, apresentavam-se a Doralina Gonçalves, dona do hotel,
para carregar as bagagens dos clientes até as estações rodoviária
e ferroviária.
Dia e noite, os dois
conduziam seus carrinhos de bagagens, cantarolando pelas ruas e
cumprimentando moradores e comerciantes. A procura por parte dos
moradores das ruas do Comercio, Gal. Câmara e Gal. Osório, pelos
serviços dos meninos ocorria com intensa frequência. Pedidos como
maços de cigarros, bebidas alcoólicas caras, alucinógenos e
revistas pornográficas, movimentavam um dinâmico comércio ilegal.
Ataíde e Mudo, possuíam
conexões com pessoas que conseguiam furtar estes produtos dos vagões
e depósitos da ferrovia ,e, das casas comerciais da cidade.
Outro
ponto comercial próximo da estação ferroviária e muito procurado
era o armazém de Alberto Schimtz. Vendia-se de tudo: roupas,
calçados, arroz, feijão, farinha, milho, rapaduras, tabaco, objetos
de montaria e couro, sementes, ferramentas e água ardente. A
freguesia era variada, de moradores das imediações, como as
crianças que compravam balas e merengues, até pequenos vendedores,
viajantes, ex-combatentes, oportunistas e cafetões que jogavam
cartas e dominó regado a muita bebida.
Seu
Alberto, como era chamado pelos clientes, procurava não tomar
partido dos assuntos discutidos no armazém, tão pouco, dificultar a
presença de algumas pessoas, mas quando havia exageros no consumo de
bebidas e os jogos acabavam em conflitos, solicitava a presença da
polícia ou ele mesmo os expulsava armado com sua carabina spencer
muito usada pelo Exército brasileiro na guerra do Paraguai.
O
grande fluxo de mercadorias e transeuntes, tornava a região alvo de
furtos e brigas. As cercas em trono do pátio da ferrovia, limitando
o aceso a plataforma de embarque, escritórios, armazéns e oficinas
eram de fácil transposição e os passageiros estavam vulneráveis a
furtos na área de embarque. A vigilância dentro do complexo estava
a cargo da empresa que agia com deficiência não conseguindo impedir
roubos de bagagens e desvios de mercadorias.
No
lado de fora do complexo ferroviário não era diferente. O
patrulhamento exercido pelas guardas púbicas nas ruas e as
diligências nos bares e nas casas de jogos das imediações não
impediam a prática de crimes. O baixo efetivo, a falta de
equipamentos e de organização de ações coordenadas e regulares,
acabavam contribuindo para tornar a região insegura dia e noite.
Com
frequência ouviam-se pessoas gritando ou perseguindo os batedores
de carteiras que rapidamente
escondiam-se nos becos e nos matagais das proximidades. Nos
depósitos da estação, funcionários denunciavam a falta de latas
de graxa, sacos de alimentos e equipamentos ferroviários. O armazém
do senhor Alberto convivia com o furto de alguns produtos,
principalmente as frutas que ficavam expostas na calçada em grandes
cestas de palhas e as cebolas e ferramentas penduradas com barbantes
nas duas portas do prédio.
Os
embates corporais eram regulares e impressionavam pela violência
empregada entre os contendores. Por exemplo, a briga na praça
Itararé, entre os jovens Diniz Rodrigues e João Pereira, ambos
trabalhadores sazonais. A desavença surgiu em um jogo de cartas no
restaurante do hotel Rio Grandense,
na rua Gal. Câmara, acesso ao bairro ferroviário. No local a
contenda não passou de farpas verbais e ameaças, graças a
intervenção dos demais usuários das mesas de jogos.
Porém,
dias após o fato, Diniz encontrou João na praça Itararé, ambos
estavam a cavalo, dando inicio a uma perseguição que ocasionou na
queda de João ao solo após o golpe de relho que levou na cabeça.
Com a queda, João não conseguiu impedir Diniz de descer do cavalo e
dar início uma sessão de espancamento, ferindo-o na cabeça e nas
mãos.
A
briga durou alguns minutos e chamou a atenção de todos que passavam
pela redondeza. Dona Maria Luíza, diante da violência, começou a
clamar ajuda para cessar o embate. Já o empregado da Casa
Aita, Luciano Bonini, observou
tudo do balcão, enquanto o menino, Americano Lopes, que estava a
caminho do potreiro para recolher suas vacas, correu assustado.
Finalmente o biscateiro José Lucas dos Santos, interferiu no
conflito separando-os. O resultado da briga para Diniz fora um
profundo ferimento abdominal produzido por uma faca que João portava
na cintura.
A
ferrovia não se limitava ao transporte de cargas e de passageiros,
como observamos sua influência ultrapassava os muros da estação.
Em uma relação muito mais complexa, o “cavalo de ferro”,
integrou territórios da região, consolidou redes de comunicações,
criou expectativas progressistas, e, possibilitou a circulação de
pessoas, matérias-primas, produtos, informações e capitais. E,
finalmente, moldou a geografia espacial e social da cidade.
E os personagens que trabalhavam no “lado de dentro” do complexo
ferroviário? Quem eram eles? Que setores trabalhavam? A que riscos
estavam expostos? O que pensavam? Tais questionamentos abordaremos no
próximo texto.
Trabalhadores
na construção do trecho da estrada de ferro Cruz Alta – colônia de Ijuhy (Memórias
Ferroviárias VFRGS).
Frente da
estação ferroviária de Cruz Alta (Foto do autor.)
Estação
ferroviária em 1905
Plataforma
da estação em 2013 (Foto do autor)
Plataforma de embarque e desembarque (Foto: Blog Cruzaltino)
Frente da estação, 2013(foto do autor)
Praça Itararé, 2013 (foto do autor)