Fabrício Renner de Moura

Graduado e Mestre em História, e, Especialista em Campo Social:práticas/saberes. Nesse espaço busco revisitar discussões e interpretações sobre História regional e local, assim como outras dimensões historiográficas.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

MANUEL PROPÍCIO ALVES: VETERANO DA GUERRA DO PARAGUAI E INIMIGO PÚBLICO.

Rua Itaparica(hoje Barão do Rio Branco), sentido norte da cidade caminho para a região dos imigrantes e colonos italianos. Por volta das 20 horas, em frente ao movimentado armazém de secos e molhados do comerciante espanhol José Soares, dois homens conhecidos na área, aparentemente embriagados, discutem e gesticulam chamando a atenção de vizinhos e frequentadores do estabelecimento. Entre palavras de baixo calão, gritos e acusações, os oponentes trocam empurrões e socos, até que um violento golpe de porrete foi desferido levando um deles ao chão.
Leão Velloso Braz, 65 anos, ferido na região frontal da cabeça, sem forças para reagir levantou-se e ensanguentado correu em direção a rua Coronel Martins na ladeira de acesso ao bairro da capoeira onde morava. Horas depois, morreu de traumatismo craniano no quarto de pensão que alugava. O agressor, Manuel Propício, 78 anos, logo após a briga escondeu o porrete em seu casaco preto e tratou de fugir para a casa que alugava nos arredores do Cemitério Público. Segundo as testemunhas arroladas na investigação policial, momentos antes do embate, Propício entrou no armazém munido de seu porrete e pediu a Soares uma garrafa de cachaça.
Durante uns goles e outros para se aquecer, pois em junho de 1921, o inverno prenunciava-se rigoroso, Alves observava atento de dentro do armazém o movimento da rua. De repente, ao avistar Braz, dirigiu-se apressadamente ao encontro deste dando inicio a briga. Manoel Alves e Leão Braz, homens pobres e com poucas oportunidades, tinham em comum o apresso por jogos. Costumavam frequentar mesas de carteados, as carpetas, situadas nos bairros barro preto e capoeira, e, canchas do jogo de osso espalhadas nas travessas do centro, nas margens de córregos e nos barrancos das estradas de ferro da cidade .
        Os jogos possuíam um duplo sentido na vida destes homens. De um lado, havia o aspecto cultural do universo popular, pois com a prática satisfaziam o prazer de apostar e de arriscar o pouco que tinham. E de outro, a necessidade material, já que o dinheiro e os objetos adquiridos nas apostas ajudavam a sobreviver. É necessário considerar que Alves e Braz viviam na extrema pobreza prestando serviços temporários e pouco remunerados nas casas comerciais e nos currais da região. Assim, arriscar-se em ambientes tensos regados a bebidas e sujeitos a batidas policiais, era um risco, mas poderia ser mais uma forma de minimizar a pobreza.
          Manoel Propício Alves, após evadir-se do local fugiu para a cidade de São Luiz Gonzaga. Na condição de foragido e principal suspeito do assassinato, coube ao juiz solicitar a policia desta cidade a prisão de Alves. Depois de várias fugas, finalmente ele foi detido e enviado a cadeia pública de Cruz Alta. Perante o delegado de polícia declarou não saber os motivos da briga, visto que estava bêbado. E que sequer conhecia Leão Veloso Braz. Em juízo manteve as declarações e ouviu de José Soares, uma das testemunhas do processo, a acusação de que era um homem de má procedência.
          Veterano da Guerra do Paraguai, a trajetória de Alves em Cruz Alta assemelha-se a de muitos brasileiros, argentinos, uruguaios e paraguaios que buscavam em terras distantes o recomeço de suas vidas. De origem pernambucana, fixou residência em Cruz Alta após o conflito, por volta dos anos de 1869 e 1870. Durante um tempo viveu no local conhecido como cercado velho (hoje regiao norte das ruas Voluntários da Pátria e Procópio Gomes) nas proximidades da cadeia pública. Casou-se e mudou-se para o norte da cidade.
         Sua participação na guerra começou quando soube do decreto imperial n. 3. 371 de 07 de janeiro de 1865, garantindo aos voluntários o direito a dois alqueires e meio de terra, e, salário mensal às famílias dos soldados mortos. Mesmo sem nunca ter manejando um fuzil, alistou-se em Pernambuco deixando pai, mãe e irmãos para sempre. Lutou por quatro anos no Paraguai, enfrentando o inimigo no campo de batalha, as epidemias de sarna e de varíola, a fome e o frio. Dispensado da guerra em dezembro de 1869, não recebeu as gratificações e os trezentos réis diários conforme prometido pelo decreto.
           Sem condições de reivindicar os benefícios prometidos em terras paraguaias, retornou para o Brasil. Já estabelecido em Cruz Alta e com poucos recursos financeiros para fazer valer os direitos prometidos, Alves até que tentou algum movimento mas esbarrou na burocracia imperial que exigia uma infinidade de requerimentos, petições e documentos comprobatórios da participação dele no conflito. Na verdade, o fim da guerra do Paraguai iniciou outro conflito para o ex-combatente. Os inimigos da vez eram o esquecimento por parte da sociedade de sua defesa ao país, as deslealdades do imperador e demais governantes, a extrema pobreza e a marginalização social.
            O julgamento de Manoel Propício Alves, na sala de sessões da intendência de Cruz Alta, não limitou-se aos eventos que terminaram com o assassinato de Leão Velloso Braz. Convém ressaltar que durante todo o processo criminal ele confessou seu crime. Assim, algemado e cabisbaixo, Alves ouviu em silêncio a humilhação social que foi exposto pelo rito judicial. Afinal, além de réu confesso, Alves reunia todas as condições de um indivíduo perigoso: pobre, mulato, analfabeto, desempregado e morador do subúrbio, e ainda, possuir modos de vida que destoam dos modelos ditos civilizados.
        Durante o depoimento do Delegado de Polícia, Dinarte Vargas, o mesmo que apoiava de maneira violenta a politica Firminista em Cruz Alta, declarou ao juiz e aos jurados, que o réu costumava promover tumultos nas ruas e nos demais espaços da cidade. E ainda era conhecido “por todos pelo seu completo estado de embriaguez”. O advogado de defesa de Alves, José Vasconcelos Pinto, diante da intenção da promotoria pública e do Delegado de polícia em convencer os jurados a condenarem seu cliente, tratou de declarar que o réu era “privado de sentidos e intelligencia” e por isso praticou o crime.

            Após réplicas e tréplicas da promotoria e da defesa, Manoel Propício Alves, 78 anos, veterano da Guerra do Paraguai, foi absolvido e condenado a pagar os custos do processo. Livre da cela suja e úmida da cadeia, o veterano viveu a sombra da pior sentença que uma pessoa pode ter, a condenação pública.   

UM CORRENTINO SOBREVIVENTE DA GUERRA DO PARAGUAI.

 Após dias à procura de uma ocupação remunerada, o diarista Braz Alegre conseguiu um trabalho nas obras de reconstrução da ponte sobre o arroio Nossa Senhora, região oeste da cidade. Destruída pelas enchentes de março de 1886, os danos à ponte impediram o trânsito de carretas e de carruagens à estrada do Faxinal, importante via de ligação da vila de Cruz Alta às matas dos Rios Conceição e Ijuí. Para executar a obra, o poder público municipal à época, contratou o construtor André Antônio Moraes, que apresentou o orçamento “mais em conta” e o prazo de seis meses para conclusão da ponte. Conforme o contrato, cabia a Moraes providenciar e bancar as ferramentas e a mão- de- obra.
Com sua carreta de dois eixos e puxada por um cavalo, Moraes percorreu as ruas da cidade a procura de trabalhadores. Como de costume, dirigiu-se a fonte de água pública conhecida como “chafariz da Igreja” (Hoje esquinas das ruas João Manuel e Venâncio Aires), local frequentado por muitos trabalhadores dispostos a ganhar alguns trocados por jornadas limitadas. Em meio às filas de usuários das bicas de água, homens, mulheres e crianças, formavam pequenas rodas em torno da fonte para flanar, cantarolar, beber e jogar. Entre os jogos preferidos que ajudavam a minimizar o tédio da espera, estavam os temidos jogo do bicho e jogo de baralho espanhol denominado de “primeira”.
Carregado com pás, enxadas, foices, machados, serras, cordas, correntes, esquadros, martelos, pregos e querosene, e, rodeado pelos seus cães perdigueiros, Moraes estacionou a carreta e enunciou a proposta de trabalho, prometendo pagar um vintém por dia. Além dessa garantia, o construtor comprometeu-se pelo transporte até o local da obra distante alguns quilômetros do centro da cidade. Quanto à alimentação e possíveis acidentes e ferimentos decorrentes da obra, declarou que era de total responsabilidade do trabalhador. Diante dessas condições e desempregado há meses, o argentino da cidade de Corrientes, Braz Alegre, 35 anos, aceitou a proposta e ofereceu-se ao trabalho.
Alegre tinha experiência neste ramo, trabalhou na reconstrução da ponte sobre o córrego “Chico Preto” na estrada para o distrito do Cadeado e constantemente era chamado pelo construtor Luiz Pastoris. Este último vencedor de muitos contratos de obras públicas nos últimos anos do Império. Todavia eram empregos temporários e desvalorizados, visto que o trabalho associava-se a escravidão e a violência. Uma prática de gente ignorante, pobre e analfabeta, de modo que o valor do dia de trabalho e o pagamento dependiam do interesse do empregador. O Estado, por sua vez, não interferia nesta relação, legitimando explorações, humilhações, espancamentos, condições desumanas de trabalho.
Mesmo desprovido de direitos à aposentadoria e à assistência médica (conquistas sociais que só viriam mais tarde na República durante a Era Vargas), não restava alternativa a Alegre e a tantas pessoas senão submeter-se aos mandos e desmandos dos patrões. Alegre fugiu com sua família da cidade de Corrientes, as margens do rio Paraná, por volta dos anos de 1866 e 1867. Em abril de 1865, a esquadra naval paraguaia e três mil soldados bombardearam, invadiram e saquearam Corrientes, mudando radicalmente a vida da família. Durante a ocupação paraguaia, jovens das cidades de Buenos Aires, Rosário, Córdoba e Santa Fé, bem como de Corrientes, alistaram-se nos batalhões de infantaria e cavalaria do Exercito para recuperar a cidade, mas sem sucesso.

Diante dos saques, dos toques de recolher, das prisões arbitrárias e das violências dos soldados e dos oficiais paraguaios às mulheres e às crianças, a família Alegre não hesitou em fugir. Sem tempo deixaram a estreita rua Santiago Del Estero, nordeste da cidade, onde moravam e tomaram o caminho de Posadas atravessando o rio Uruguai no povoado de San Xavier. Em território brasileiro pernoitaram nas margens de picadas e nos matagais seguindo para Cruz Alta por saberem de sua economia voltada ao comércio de gado, pois há gerações a família dedicava-se a produção de couros em Corrientes.
No entanto, quando chegaram perceberam que reconstruir a vida em Cruz Alta não era como esperavam. A cidade já estava sob os efeitos da guerra, economia estagnada, preços dos alimentos exorbitantes e subscrições para os feridos e os órfãos. Com poucos recursos, pois deixaram às pressas tudo o que tinham em Corrientes, ocuparam as margens de um dos afluentes do rio Panelinha, no bairro da capoeira. A pretensão da família em investir no comércio do couro tornara-se inviável. A alternativa para sobreviver foi trabalhar em madeireiras, olarias, moinhos e outros serviços sazonais.
Assim como Braz Alegre, que fugiu das atrocidades da guerra, muitos uruguaios, paraguaios e brasileiros, oriundos de outros pontos do país, sozinhos ou com seus familiares, buscaram um novo recomeço em Cruz Alta. Todavia, aquelas expectativas iniciais frente à nova e desconhecida terra deu lugar a uma realidade dramática marcada por lutas cotidianas anônimas e silenciosas em prol da sobrevivência. Após seis meses de muito trabalho, a ponte sobre o arroio Nossa Senhora foi concluída e entregue para o trânsito. Braz Alegre, devido o longo tempo de exposição ao sol teve queimaduras no rosto e nos braços, em suas mãos e pés abriram feridas. Novamente desempregado, restou-lhe, no entanto, retornar ao “chafariz da Igreja”...





UM HERÓI DA GUERRA DO PARAGUAI ESQUECIDO DE NOSSA HISTÓRIA.

 Na madruga de 23 de julho de 1925, Luciano Lemes morreu de frio nas escadarias da Cadeia Pública da cidade de Cruz Alta. Senhor de tenra idade, rosto avermelhado e envelhecido, barba grisalha e andar lento, Luciano era um ex-combatente da Guerra do Paraguai(1865-1870). Conhecido na comunidade por narrar suas histórias sobre o campo de batalha, o veterano, acompanhado de seus cães, caminhava pelo centro da cidade e no largo da Catedral do Divino adquirindo roupas, comidas, bebidas e alguns trocados.
A morte do velho soldado espalhara-se ao amanhecer e causou certa comoção na cidade. Por pena, arrependimento ou remorso algumas pessoas compareceram no local ascendendo velas e orando; a imprensa, a mesma que cobrava da polícia e do governo municipal ações para deter a presença de pessoas pobres nos espaços do centro, qualificou Luciano como verdadeiro patriota. Um homem que bravamente lutou nos campos paraguaios pela sua terra, mas suas qualidades foram cruelmente esquecidas.
A trajetória de Luciano Lemes no conflito mais violento da América do Sul, iniciou quando alistou-se em uma das milícias e Corpos de Voluntários organizados na sede e nos distritos de Cruz Alta. Como, por exemplo, o Corpo de Voluntários mobilizado pelo Tenente-Coronel João Batista Vidal de Almeida Pillar, em 1865, e a 4° Divisão de Cavalaria comandada pelo Brigadeiro José Gomes Portinho, em 1866. Tais divisões da Guarda Nacional marcharam para a fronteira oeste com o objetivo de expulsar as tropas paraguaias das cidades de São Borja, Itaqui e Uruguaiana. Cercados nos banhados e nos capões da região, os soldados paraguaios foram derrotados no combate do Butuí.
Além do entusiasmo e da euforia característicos do inicio de uma guerra, Luciano e outros jovens pobres do país buscaram no alistamento a rara oportunidade de melhorar de condição de vida. Para mobilizar as pressas uma força militar, diga-se passagem despreparada, capaz de enfrentar o exército do Paraguai, o governo imperial prometeu aos voluntários e milicianos soldos, gratificações diárias, doação de terras, bonificações por atos de heroísmo nos combates, pensões a viúvas, órfãos e combatentes com traumas físicos, e, possibilidades de seguir a carreira militar ou em órgãos públicos.
De volta ao Brasil, entre os anos 1869-1870, Luciano não foi recebido com honras e agradecimentos por sua bravura. Encontrou um país em crise endividado com a guerra e um índice inflacionário bastante acelerado. A gleba de terra, as gratificações e o emprego público prometidos pelo governo durante a formação dos Corpos Provisórios na cidade, Luciano nunca recebeu. Desse modo, a miséria aprofundara-se. Durante 56 anos, o veterano aguardou ansioso o pagamento dos soldos por parte do Comando Militar de Porto Alegre. Todavia, seu nome nunca constava na relação dos beneficiados.
Abandonado pelo Estado, não restou outra alternativa ao velho combatente senão sobreviver de atividades informais e mal remuneradas os chamados “bicos”. Sem família, residência e perspectiva de vida, a bebida, o cigarro e a morfina, tornaram-se as formas apropriadas para fugir da dura realidade. Tais substâncias, também usadas nos campos pantanosos da guerra, ajudavam Luciano a suportar as dificuldades materiais, as mágoas, as decepções, as dores da alma e do corpo, e, as indiferenças da sociedade. Hostilizado pela opinião pública por ser morador de rua, frequentemente era detido pela polícia ou internado de forma compulsória em hospitais e manicômios do estado.
O desprezo parece ser o modo do Estado brasileiro e da sociedade civil tratarem os veteranos da Guerra do Paraguai e de outros conflitos armados que o país envolvera-se ao longo da História. Ao contrário de Luciano Lemes que viveu abandonado e pobre, os oficiais da Guarda Nacional, oriundos de famílias estancieiras e politicamente influentes, foram reconhecidos como heróis e receberam do Império terras as margens dos Rios Uruguai, Ijuí e Conceição como forma de pagamento por seus serviços a pátria.



domingo, 27 de abril de 2014

A CIDADE DE CRUZ ALTA E A FERROVIA NO SÉCULO PASSADO: UMA RELAÇÃO COTIDIANA .

Desde o final do século XIX, o rufar do trem faz parte do cotidiano de Cruz Alta, serpenteando-se pelos trilhos nos bairros e no centro da cidade, cortando ruas, estremecendo residências, ensurdecendo pessoas. Fascinante ou um empecilho para a dinâmica urbana, o fato é que o trem e a ferrovia estão presentes na memória, no imaginário social e na paisagem urbana de Cruz Alta.
Nomes de ruas e de bairros lembram a presença do universo ferroviário e são evidências da relação cotidiana com os diferentes espaços da cidade. As ruas Gustavo Vouthier e Setembrino de Carvalho, ambos engenheiros da ferrovia, são um exemplo. A “vila Ferroviária”, um dos maiores e mais antigos bairros da cidade com as casas de madeira habilmente detalhadas nas fachadas, a pequena Capela Perpétuo Socorro, o estádio Brasil Siqueira Borges, o Círculo Operário Ferroviário e a Praça Itararé são registros do mundo ferroviário além dos muros da estação.
Cortando campos, desmatando florestas, desabrigando posseiros, destruindo o modo de vida das sociedades indígenas e integrando territórios, o ramal da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande do Sul, chegou a Cruz Alta em novembro de 1894, quando foi inaugurado pela empresa belga Sud Ouest Brésilien, os primeiros 160km do ramal Santa Maria a Marcelino Ramos, ligando Cruz Alta a Santa Maria da Boca do Monte.
O prolongamento desse ramal seguiu por outras cidades do Planalto Médio e foi concluído no rio Uruguai na década de 1910, totalizando a extensão de 535,234Km(Ver: Ana Paula Wickert. Nos caminhos da ferrovia). Doze anos depois, no ano de 1906, o governo federal anunciou a construção, pelo 2º Batalhão Ferroviário, da estrada de ferro Cruz Alta a colônia Ijhuy, abrindo caminho para as localidades da região das missões - Santo Ângelo e Santa Rosa.
Com uma velocidade de cerca de 30 km, o cavalo de ferro, como era chamado na época, transportava cargas e passageiros, assim como, a mensagem de progresso e de civilização. Onde anos antes deslocava-se de carroças, carroções e a trote de cavalo, com o trem, as distâncias diminuíram e ocorreu a unidade regional, interligando o município com seus distritos e zonas colonias. Desse modo, as estações ferroviárias tornaram-se importantes referências não somente na economia, mas nas relações cotidianas e comerciais, assim como, no controle do tempo medido através da chegada e da saída dos trens.
Na estação ferroviária de Cruz Alta não foi diferente. Talvez poucos cruzaltenses tenham presenciado o intenso trânsito de transeuntes, carros e mercadorias no prédio onde hoje é sede do Museu Municipal e da Secretaria de Cultura. Os que acompanharam o auge das atividades ferroviárias, destacam nas suas memórias, o movimento nas imediações da estação e a presença de uma rede comercial constituída de hotéis, pousadas, restaurantes, lojas de roupas, ferrarias, madeireiras, bancos, pequenas vendas, sapatarias, barbearias, depósitos de mercadorias e o terminal rodoviário.
Diante disto, a estação de Cruz Alta era um espaço que recebia pessoas de todos os segmentos sociais. Tanto foi assim, que pela plataforma passaram candidatos a presidência da República, governadores, Ministros de Estado e marechais do exército cruzando-se com usuários anônimos, como trabalhadores da ferrovia, vendedores de doces e de jornais, maleiros, boleeiros, pedintes, cafetões, jogadores, receptadores e meretrizes.
Para estar a par das novidades, acontecimentos e intrigas da cidade, bastava ir até a viação férrea, expressão usada na época pelos moradores, e integrar-se de tudo: o embarque dos recém-casados no trem paulista; a chegada de alguém muito importante sob o som de melodias de bandas marciais e dos fogos de artifícios; as notícias policiais, com a transferência de presos para a Capital; a eclosão de guerras com embarque de militares das unidades da cidade rumo ao combate; a chegada de famílias rodeadas de bagagens chamando a atenção; quem foi admitido e transferido dentro da empresa, entre outros.
Passageiros, curiosos, trabalhadores sazonais e operários da ferrovia misturavam-se com os sons da locomotiva, a fumaça, as malas e demais cargas. Era um intenso “vai e vem” de pessoas com suas vozes, sorrisos, choros e gritos estridentes até o momento da partida das composições.
Entre tantas pessoas, encontramos algumas que faziam da ferrovia e das áreas adjacentes parte de suas vidas. Não eram somente os passageiros, mas muitos personagens corriqueiros do cotidiano, como os pequenos comerciantes, os vendedores de rapaduras, os aguadeiros, os mandaletes, os boleeiros, os pedintes, os meninos cuidadores de cavalos, as prostitutas, os desocupados e os batedores de carteiras.
Ao longo de um século XX, a região da estação ferroviária tornou-se um importante centro comercial e de sustento para muitas pessoas. Fosse com empregos regulares ou com formas de sustento informais, nem sempre alinhadas com as leis, o que se observava era um cenário urbano constituído por multiplicidade de experiências sociais. No entanto, mesmo com toda a importância comercial e o intenso fluxo de pessoas, de carros de cargas e de mercadorias, a área da estação ainda apresentava características rurais.
Seus potreiros, campos abertos, matagais, córregos, ruas embarradas e pútridas, ainda estavam presentes, coexistindo com a velocidade, a fluidez e as mudanças proporcionadas pelas invenções modernas que não cessavam de chegar na cidade. O trem, a energia elétrica, as linhas telegráficas e telefônicas e os veículos Ford Overland e Fiat 501 colonial representavam o progresso e a civilização, assim como a superação das amarras do passado, como o semi - isolamento territorial vivido por um século.
A praça Itararé, localizada em frente ao prédio da estação, apesar de pequena, talvez um dos menores logradouros públicos de Cruz Alta, era um ponto de reunião de boleeiros, engraxates, jogadores do bicho e do vintém, meretrizes, oportunistas, meninos e meninas dançando e cantarolando, damas e cavaleiros finamente trajados. É neste local que o boleeiro Antônio Rocha e o mensageiro conhecido como Arruda, estacionavam uma carruagem que alugavam de um comerciante da cidade.
Em busca de clientes, geralmente passageiros, eles, saiam oferecendo seus serviços logo que uma locomotiva parava, recolhendo as bagagens e encaminhando os passageiros até a carruagem, ou coche. O movimento de clientes dependia das locomotivas que chegavam e saiam de hora em hora. Assim, nos intervalos, Rocha e Arruda, frequentavam bares, bancas de jogos e restaurantes das proximidades da estação. Além de Rocha e Arruda, dezenas de trabalhadores dedicavam-se a esta atividade.
Não muito distante da praça Itararé, encontrava-se com a discrição de sempre, a meretriz Nair, ela usava vestido vermelho e tinha os cabelos ondulados, com cerca de 30 anos. Era conhecida por portar uma navalha na bolsa para defender-se das constantes agressões físicas de clientes, cafetões e mulheres rivais, como por exemplo, a Vanderleia que fazia ponto nas imediações da estação rodoviária.
Pela manhã, a meretriz com seu habitual cigarro entre os dedos, fazia da estação o ponto de encontro para seus programas, e então, acompanhada do cliente, dirigiam-se até um dos quartos alugados nas proximidades. Após o trabalho, seguia para sua casa nas proximidades do cemitério público, onde novamente no início da tarde daria continuidade a sua rotina dedicando-se a serviços sazonais e agendando novos clientes.
Durante muitos anos Nair utilizou a praça Itararé e suas imediações para realizar programas e garantir o seu sustento.
Na porta de entrada da estação ferroviária, com um comportamento agressivo e modos obscenos estava Gemina Precci,aparentando ser muito jovem e vestida com roupas sujas, pouco se sabia sobre ela. Alguns passageiros disseram que a conheciam de Santa Bárbara do Sul, cidade próxima de Cruz Alta, e que de alguma maneira Gemina conseguira embarcar em um trem. Entretanto, os guardas da estação afirmavam que era uma ex-interna do Hospital psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre.
O fato é que os guardas e porteiros da ferrovia já haviam informado a polícia sobre a moça. Autora de agressões físicas, gritos e tentativas de furtos, Precci acabou detida e encaminhada a cadeia pública por estar atacada de alienação. Confirmada sua primeira internação menos de uma semana de detenção, seu destino já havia sido traçado. De volta a estação ferroviária, agora sob a escolta de dois guardas municipais, a ordem era levá-la até o Hospital Psiquiátrico São Pedro.
As vinte três horas, na plataforma da estação incomunicável e algemada ela fora conduzida em um vagão reservado até a capital do estado. Desse momento em diante, não existem mais registros da presença de Gemina nas imediações da ferrovia, nem em outras dependências da cidade.
Em direção a praça da intendência, nas esquinas das ruas do Comércio(hoje rua Pinheiro Machado) e Mariz e Barros, encontravam-se Pedro Nogueira e Manoel Bezerra. Atentos aos movimentos das locomotivas, ambos sobreviviam das atividades da ferroviárias. Pedro era barbeiro, proprietário do salão Paraizo, e parte de sua clientela advinha dos trabalhadores da ferrovia, como telegrafistas, escriturários, bagageiros, maquinistas, foguistas, ferreiros e mecânicos. Nas conversas, inteirava-se dos horários dos trens e de quem passava pela gare da estação.
Atravessando a rua, de frente a praça, Manoel Bezerra como de costume varria a densa poeira avermelhada acumulada nas calçadas e janelas. Recepcionista do Hotel Espellet que era um dos estabelecimentos mais elegantes do ramo hoteleiro na cidade. Frequentemente, Manoel conhecia artistas que vinham se apresentar nos cine - teatros da cidade, bem como políticos e empresários. Costumava receber dos clientes gorjetas que auxiliavam no seu orçamento e possibilitavam algumas diversões nas madrugadas da cidade.
Mas, quem não estivesse disposto a gastar muito dinheiro para hospedar-se na cidade poderia procurar o hotel Gonçalves, de propriedade do senhor Flori Gonçalves. Com uma localização privilegiada, frente com a estação rodoviária e próximo do centro e da ferrovia, o hotel recebia muitos hóspedes. Todos os dias, cedo da manhã, os jovens Ataíde e o Mudo, apresentavam-se a Doralina Gonçalves, dona do hotel, para carregar as bagagens dos clientes até as estações rodoviária e ferroviária.
Dia e noite, os dois conduziam seus carrinhos de bagagens, cantarolando pelas ruas e cumprimentando moradores e comerciantes. A procura por parte dos moradores das ruas do Comercio, Gal. Câmara e Gal. Osório, pelos serviços dos meninos ocorria com intensa frequência. Pedidos como maços de cigarros, bebidas alcoólicas caras, alucinógenos e revistas pornográficas, movimentavam um dinâmico comércio ilegal. Ataíde e Mudo, possuíam conexões com pessoas que conseguiam furtar estes produtos dos vagões e depósitos da ferrovia ,e, das casas comerciais da cidade.
Outro ponto comercial próximo da estação ferroviária e muito procurado era o armazém de Alberto Schimtz. Vendia-se de tudo: roupas, calçados, arroz, feijão, farinha, milho, rapaduras, tabaco, objetos de montaria e couro, sementes, ferramentas e água ardente. A freguesia era variada, de moradores das imediações, como as crianças que compravam balas e merengues, até pequenos vendedores, viajantes, ex-combatentes, oportunistas e cafetões que jogavam cartas e dominó regado a muita bebida.
Seu Alberto, como era chamado pelos clientes, procurava não tomar partido dos assuntos discutidos no armazém, tão pouco, dificultar a presença de algumas pessoas, mas quando havia exageros no consumo de bebidas e os jogos acabavam em conflitos, solicitava a presença da polícia ou ele mesmo os expulsava armado com sua carabina spencer muito usada pelo Exército brasileiro na guerra do Paraguai.
O grande fluxo de mercadorias e transeuntes, tornava a região alvo de furtos e brigas. As cercas em trono do pátio da ferrovia, limitando o aceso a plataforma de embarque, escritórios, armazéns e oficinas eram de fácil transposição e os passageiros estavam vulneráveis a furtos na área de embarque. A vigilância dentro do complexo estava a cargo da empresa que agia com deficiência não conseguindo impedir roubos de bagagens e desvios de mercadorias.
No lado de fora do complexo ferroviário não era diferente. O patrulhamento exercido pelas guardas púbicas nas ruas e as diligências nos bares e nas casas de jogos das imediações não impediam a prática de crimes. O baixo efetivo, a falta de equipamentos e de organização de ações coordenadas e regulares, acabavam contribuindo para tornar a região insegura dia e noite.
Com frequência ouviam-se pessoas gritando ou perseguindo os batedores de carteiras que rapidamente escondiam-se nos becos e nos matagais das proximidades. Nos depósitos da estação, funcionários denunciavam a falta de latas de graxa, sacos de alimentos e equipamentos ferroviários. O armazém do senhor Alberto convivia com o furto de alguns produtos, principalmente as frutas que ficavam expostas na calçada em grandes cestas de palhas e as cebolas e ferramentas penduradas com barbantes nas duas portas do prédio.
Os embates corporais eram regulares e impressionavam pela violência empregada entre os contendores. Por exemplo, a briga na praça Itararé, entre os jovens Diniz Rodrigues e João Pereira, ambos trabalhadores sazonais. A desavença surgiu em um jogo de cartas no restaurante do hotel Rio Grandense, na rua Gal. Câmara, acesso ao bairro ferroviário. No local a contenda não passou de farpas verbais e ameaças, graças a intervenção dos demais usuários das mesas de jogos.
Porém, dias após o fato, Diniz encontrou João na praça Itararé, ambos estavam a cavalo, dando inicio a uma perseguição que ocasionou na queda de João ao solo após o golpe de relho que levou na cabeça. Com a queda, João não conseguiu impedir Diniz de descer do cavalo e dar início uma sessão de espancamento, ferindo-o na cabeça e nas mãos.
A briga durou alguns minutos e chamou a atenção de todos que passavam pela redondeza. Dona Maria Luíza, diante da violência, começou a clamar ajuda para cessar o embate. Já o empregado da Casa Aita, Luciano Bonini, observou tudo do balcão, enquanto o menino, Americano Lopes, que estava a caminho do potreiro para recolher suas vacas, correu assustado. Finalmente o biscateiro José Lucas dos Santos, interferiu no conflito separando-os. O resultado da briga para Diniz fora um profundo ferimento abdominal produzido por uma faca que João portava na cintura.
A ferrovia não se limitava ao transporte de cargas e de passageiros, como observamos sua influência ultrapassava os muros da estação. Em uma relação muito mais complexa, o “cavalo de ferro”, integrou territórios da região, consolidou redes de comunicações, criou expectativas progressistas, e, possibilitou a circulação de pessoas, matérias-primas, produtos, informações e capitais. E, finalmente, moldou a geografia espacial e social da cidade.
E os personagens que trabalhavam no “lado de dentro” do complexo ferroviário? Quem eram eles? Que setores trabalhavam? A que riscos estavam expostos? O que pensavam? Tais questionamentos abordaremos no próximo texto.


                                             



                                   Trabalhadores na construção do trecho da estrada de ferro                                   Cruz Alta – colônia de Ijuhy (Memórias Ferroviárias VFRGS).



                                    Frente da estação ferroviária de Cruz Alta (Foto do autor.)


                       Estação ferroviária em 1905


                                             Plataforma da estação em 2013 (Foto do autor)


                                           

                                              Plataforma de embarque e desembarque                                                                                                          (Foto: Blog Cruzaltino)



Frente da estação, 2013(foto do autor)




Praça Itararé, 2013 (foto do autor)





domingo, 24 de novembro de 2013

.Patrimônios históricos que desapareceram da paisagem cruzaltense. A casa dos Mirandas e o Convento das Carmelitas.

Nossa homenagem aos músicos do passado e do presente, parabéns!!

Na imagem, o bloco "os batutas", que nos carnavais da década de 1920, desfilava pelas ruas do centro de Cruz Alta com carros alegóricos, lança perfumes e sua charanga, executando "marchinhas" sob os aplausos da população.

terça-feira, 5 de junho de 2012

O COLÉGIO RIO BRANCO: UM FRAGMENTO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO CRUZALTENSE. Em lamentável estado de conservação, encontramos na Avenida. Gal. Osório, n. 860, centro de Cruz Alta, o edifício do antigo Colégio Rio Branco. Construído no ano de 1915, pelo belga Henrique Hostin, diretor e professor da entidade, o colégio funcionou em regime de internato e ofereceu os cursos primário e secundário para meninos e meninas da cidade e região. O plano curricular da instituição era composto pelas disciplinas de conhecimentos gerais, como álgebra e geometria, línguas portuguesa, francesa e alemã, geografia, história, instrução cristã e ciências químicas e naturais; e atividades físicas com aulas de ginástica sueca, corridas e saltos. Além desses cursos, o colégio criou uma companhia de escoteiros para os alunos, visando ensiná-los um cotidiano disciplinado com horários, responsabilidades e companheirismo, parecido com a vida militar. Com o intuito de prepará-los a ter um corpo saudável e perfeito, a companhia organizava excursões a pé até os campos adjacentes da cidade. Os jovens escoteiros, também tinham aulas cívicas e desfilavam em datas nacionais, como o dia da independência. Observando a grosso modo, as disciplinas e o contexto sóciopolitico, início da República, a instituição desenvolveu um trabalho educacional voltado para a formação intelectual, moral e física dos alunos. Prepará-los para tornarem-se indivíduos equilibrados e aptos para o trabalho num Brasil governado por elites ávidas pelos modelos civilizados das nações ocidentais modernas e capitalistas. Por fim, quanto a arquitetura do edifício, conforme as observações da arquiteta Maria Regina Kramer Silva, o estilo do prédio revela uma particularidade em comparação com as outras construções da época na cidade. Segundo Maria, o antigo colégio representou uma inovação estética e moderna no espaço urbano de Cruz Alta graças aos detalhes das grades em estilo belga na porta principal ainda existente, a assimetria da fachada frontal e as quatro porta-janelas que lembram pequenos púlpitos. (obra consultada: Um século de arquitetura urbana em Cruz Alta – 1826 a 1930. Unicruz, 1999. P. 42)